pitypooralfie 03/03/2024"tinha um ar tão confiante, não tinha? no entanto, nenhuma das suas certezas valia um cabelo de mulher. nem sequer tinha certeza de estar vivo, já que vivia como um morto. eu parecia ter as mãos vazias. mas estava certo de mim mesmo, certo de tudo, mais certo do que ele, certo da minha vida e desta morte que se aproximava. sim, só tinha isto. mas ao menos agarrava esta verdade tanto quanto esta verdade se agarrava a mim. tinha tido razão, ainda tinha razão, teria sempre razão. vivera de uma certa maneira e poderia ter vivido de outra. fizera isto e não fizera aquilo. não fizera determinada coisa, ao passo que fizera esta outra. e depois? era como se durante todo o tempo tivesse esperado por este minuto e por essa madrugada em que seria justificado. nada, nada tinha importância, e eu sabia bem por quê. também ele sabia por quê. do fundo do meu futuro, durante toda esta vida absurda que eu levara, subira até mim, através dos anos que ainda não tinham chegado, um sopro obscuro, e esse sopro igualava, à sua passagem, tudo o que me haviam proposto nos anos, não mais reais, que eu vivia"
"também os outros seriam um dia condenados. também ele seria um dia condenado. que importava se, acusado de um crime, ele fosse executado por não ter chorado no enterro de sua mãe? o cão de salamano valia tanto quanto a mulher dele. a mulherzinha-autômato era tão culpada quanto a parisiense com quem masson se casara, ou quanto marie, que queria que eu me casasse com ela. que importava que raymond fosse tão meu amigo quanto céleste, que valia mais do que ele? que importava que marie oferecesse hoje a boca a um novo meursault? será que compreendia, portanto, este condenado? e que do fundo do meu futuro..."
esse livro foi muito sensorial pra mim. senti calor do sol inclemente e o cansaço com meursault de forma bem intensa. até quando lia no meu quarto durante a noite, com o ventilador ligado e o ambiente fresco, eu sentia a opressão do calor e o sol esquentando os pensamentos.
o começo do livro foi um pouco difícil, e eu fiquei em dúvida em relação às minhas expectativas. senti um pouco de medo de não conseguir aproveitar ou entender o livro; inclusive, demorei para conseguir dar uma nota e precisei reler o último capítulo.
o estrangeiro é uma obra muito intrigante. acho que o camus construiu o protagonista de tal forma, que eu me senti apática junto com ele; nada me chocava, nenhuma situação absurda me comovia. essa ligação com meursault foi um pouco incômoda em alguns momentos.
o que mais me chocou e chamou a atenção nesta primeira leitura (porque eu com certeza precisarei reler esse livro várias vezes) foi o julgamento. é de fato absurdo tudo o que é trazido ali, como o meursault é julgado não por seu crime, mas por sua apatia diante da vida. eu realmente me senti conectada a partir dessa parte.
além de ficar um pouco revoltada com o absurdo da situação, também encontrei muito espaço para reflexão. acho que o estrangeiro é o tipo de livro que ecoa muito tempo após terminada a leitura, e que pode trazer novas percepções em reencontros futuros.
"pela primeira vez em muito tempo pensei em mamãe. pareceu-me compreender por que, ao fim de uma vida, arranjara um ?noivo?, porque recomeçara. lá, também lá, ao redor daquele asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma trégua melancólica. tão perto da morte, mamãe deve ter-se sentido liberada e pronta a reviver tudo. ninguém, ninguém tinha o direito de chorar por ela. também eu me senti pronto a reviver tudo. como se esta grande cólera me tivesse purificado do mal, esvaziado de esperança, diante desta noite carregada de sinais e de estrelas eu me abria pela primeira vez à terna indiferença do mundo. por senti-lo tão parecido comigo, tão fraternal, enfim, senti que tinha sido feliz e que ainda o era. para que tudo se consumasse, para que me sentisse menos só, faltava-me desejar que houvesse muitos espectadores no dia da minha execução e que me recebessem com gritos de ódio"
incrível como um livro tão curto pode conter tanta coisa, um universo inteiro de reflexões e críticas bem posicionadas. acho que agora eu entendo um pouquinho o amor que as pessoas têm por esse livro e pelo camus.