Wanderley 15/02/2024
Uma experiência visceral
Angústia é uma experiência visceral. Sua forma desafia o leitor. É como se acompanhássemos a montagem de um vitral, peça por peça, até conseguirmos ver sua imagem completa e impactante. As frases curtas, os pensamentos cortados do narrador (em primeira pessoa), os giros que misturam lembranças e fantasias, permeados de percepções confusas sobre uma realidade mal captada, tudo isso retrata à perfeição como pode ser dolorosamente poderosa uma mente que adoece por não conseguir organizar emocionalmente suas impressões diante do mundo em que vive.
No livro, Luiz da Silva é uma bomba-relógio, uma mistura caótica entre o passado e o futuro (estrutura temporal não-linear, como dizem), uma fuga inútil para um tempo que não volta e outro que não chega, uma falta de esperança potencializada pela inveja do que imagina ser a vida dos outros e, sobretudo, por um ressentimento agudo em relação a todos e a tudo.
Sua angústia é isso, uma soma alucinada de ódio, inveja e ressentimentos inconfessáveis até para ele mesmo, expostas em imagens e lembranças que se atropelam em seus pensamentos. Como diz Max Scheler, “o ressentimento é o auto-envenamento do espírito”. E alguém assim tão perturbado só pode ter ideias e associações de ideias perturbadas, inclusive, muito particularmente, sobre o amor. Em parte, é nessa perturbação que reside o desafio da leitura. Graciliano revela magistralmente esse estado, aos poucos, aumentando gradualmente sua intensidade até chegar a um paroxismo alucinado, quase delirante, muito bem escrito, especialmente nos capítulos finais. Para construir essa sensação de angústia inescapável, nada no texto é gratuito, não há explicações fáceis ou científicas, somente as sensações do personagem principal.
O título reflete com precisão o conteúdo da obra, publicada em 1936. E se por um lado é impossível não se contaminar pelos sentimentos que ela evoca, por outro lado, é também uma espécie de catarse, pois nos ajuda a compreender melhor até mesmo o espírito de nossa própria época, com suas angústias morais, éticas, políticas (o Brasil dos anos 30 do século 20 estava polarizado), culturais e econômicas.
Não é leitura fácil porque o estilo é provocativo e porque mostra como o sofrimento emocional (e quem não sofre?) é sim matéria de análise e cuidado, sem o que geralmente termina em tormento e desgraça. Luis da Silva, ao conviver com o resultado das suas ações, com a materialização concreta do seu mundo mental, sentindo-se culpado e paranoico, desconfiando até das sombras, desabafa: "Todos os gestos eram culpas graves". É isso, a culpa é o ápice da angústia.