A Leitora Compulsiva 10/11/2023
Somos nada e tudo. Somos o cosmo e eternidade.
AVALIAÇÃO: ?????
Já li muito livro budista, mas nenhum como esse do Hermann Hesse ? autor já conhecido por suas obras atemporais. E se eu fosse escolher um livro para representar a filosofia budista, seria 'Sidarta'.
'Sidarta' nos traz elementos de contemplação paciente da vida e do universo. Nos descreve ? de forma ficcional ? a vida de um monge discípulo que tem o objetivo de encontrar a satisfação plena, uma vida com significado e a iluminação.
Iluminação, em termos budistas, significa alcançar um estado de eternidade: uma vida eterna fora da Terra, sem ter que reencarnar novamente e ser forçado a participar do ciclo de nascer, crescer, envelhecer e morrer ? ciclo este comumente chamado de Samsara, título de um dos capítulos.
Mas diferente do Cristianismo, essa vida eterna não teria anjos ou mansões de ouro, nem sequer Deus: existe apenas o Universo, de qual matéria todos nós somos feitos, e é pra lá que voltamos após a morte segundo o Budismo. Para descrever melhor: voltamos a ser energia cósmica ? seres iluminados e conscientes participado ativamente do plano cósmico enquanto ajudamos os que ainda estão aqui a alcançarem essa iluminação também.
Sendo parcialmente Budista eu mesma, partilho do pensamento hindi-oriental; mas o livro tem suas belezas até mesmo para quem não é adepto da filosofia, contendo ricos ensinamentos de como viver uma vida melhor.
CONVITE À REFLEXÃO
Para provar que nem só de filosofia e religião vive o homem, há esse trecho que eu destaquei por puro prazer próprio, onde Sidarta questiona de forma desacreditada os ensinamentos da religião:
"Me tornei desconfiado com relação a ensinamentos e aprendizagens, que me cansei deles e que minha fé em palavras pronunciadas por mestres diminuiu muito."
O que é simplesmente incrível se você considerar que o Budismo é validado como religião em alguns países. O próprio protagonista discorda da religião e abre mão dela para alcançar uma vida de plenitude, pois desconfia que a verdadeira iluminação vem de dentro de nós mesmos, não da religião. Algo que concordo muito.
E o livro segue reforçando essa ideia de que você deve desconfiar e questionar tudo que é ensinado, ao mesmo tempo de que deve gozar os prazeres da vida, sem abrir mão delas, pois seria completo desperdício; que sentido teria a vida se você não a vivesse, em primeiro lugar?
E Sidarta nos reforça a necessidade de viver o momento presente, na contemplação da natureza, dos astros e, claro: do universo.
?A cada passo da sua jornada, Sidarta aprendia coisas que antes desconhecera. O mundo parecia-lhe diferente. Seu coração batia como que enfeitiçado. E ele mirava o sol, sempre que este se levantava acima das montanhas cobertas de florestas ou se punha atrás da longínqua praia orlada de palmeiras. Contemplava a ordem dos astros no firmamento noturno e o crescente da lua, a singrar, feito barco, pelo espaço azul.
Como eram lindos os astros e a lua, os arroios e as ribeiras, as florestas e os penedos, a cabra e o besouro dourado, a flor e a borboleta! Era prazeroso e ameno passear assim pelo mundo, candidamente, como quem acabasse de despertar e se abrisse a tudo quanto o rodeasse, sem o menor receio.
Tudo isso existira em todos os tempos, e todavia escapara a Sidarta. Ele não estivera presente. Nesse instante, porém, estava presente, fazia parte dos acontecimentos. Pelos seus olhos passavam luzes e sombras. Os astros e a lua entravam no seu coração.?
Quem já teve a oportunidade de assistir ao filme 'Poder Além da Vida', vai entender perfeitamente esse trecho e o que significa esse "estar presente" que o texto recita. Há uma cena nesse filme em que o ancião Sócrates pede ao jovem atleta que fique em silêncio e apenas escute os sons ao seu redor. Apenas assista, sem participar delas e esvaziando os pensamentos.
A princípio, ele não sente ou vê nada; mas à medida que os pensamentos dentro dele diminuem e ele começa a prestar verdadeiramente atenção ao que está acontecendo à sua volta ? sem participar ou mover-se ? os sons de vida despertam os sentidos dele. Ele agora escuta pacientemente e observa a vida ao redor acontecendo, sem pensamentos interferindo, sem passado ou futuro. Ele "entrou" no presente.
?? ? ALERTA DE SPOILER A PARTIR DESSE PONTO!
[Você foi avisado; siga por conta e risco]
Esse livro, assim como o filme, traz muitos lembretes de que a vida moderna nos deixou agitados, ansiosos e em pânico. Há várias cenas aqui dentro onde o protagonista passa a imitar a nossa rotina de trabalho, amor ao dinheiro, irritação com problemas pessoais e prazeres mundanos. Sidarta, que veio de uma linhagem de monges (no livro, são chamados brâmanes e samanas), tenta viver como nós e se arrepende ? a experiência produz nele um total vazio existencial ao ponto de querer entregar-se ao suicídio.
Mas ele mesmo ressalta que foi necessário passar por essa experiência para que pudesse participar de um "despertar" ? afinal, não tem como você saber se algo é bom ou ruim sem passar pela experiência. Foi preciso sentir profundamente o vazio e a inutilidade da vida terrena para que Sidarta pudesse voltar às suas origens de monge e alcançar a tão sonhada iluminação ? reencarnou, ganhou uma nova vida a partir da vida antiga, mas ambas as vidas eram as mesmas. Ele era todas as vidas, inclusive as que nunca conheceu.
E ele nos recorda de que ainda dá tempo para viver uma vida de qualidade, se nós apenas desacelerarmos as coisas e "entrarmos" no presente todos os dias. E sim: isso ainda é uma filosofia budista, no final das contas, pois o livro foi feito baseado completamente nessa filosofia.
CLASSIFICAÇÃO
Deixo as cinco estrelas por alguns motivos:
> Escrita impecável;
> Filosofia tranquilizante;
> Livro curto e fácil de ler;
> Introdução ideal ao pensamento budista;
> Presença fortíssima de uma conexão com a natureza;
> Reflexão saudável sobre a vida com influências minimalistas;
> Descrição sonhadora de paisagens e universo;
É o tipo de livro para ler sem pressa, com um café do lado ou até mesmo em audiobook. Vai te fazer muito bem, e tenho certeza que tirará lições valiosas dele ? sendo você religioso ou não.
Finalizo essa resenha com mais uma citação desse livro incrível:
?Proclamava paz, proclamava perfeição, sem buscar, sem imitar nada; tudo era respiração suave, em imperecível sossego, em imorredoura luz, em nunca perturbada paz.?