3.0.3 01/02/2024
Que o teu eco ressoe em ti
“Sonhava-se com um novo alfabeto, com uma nova linguagem figurada em que fosse possível fixar e transmitir as novas vivências espirituais.”
Ambientado no ano 2200, século XXIII, O jogo das contas de vidro (1943), de Hermann Hesse (1877-1962), se desenrola na sociedade de Castália, onde reside uma comunidade de intelectuais que abdicou da vida mundana. Fundindo as sabedorias ocidental e oriental, a obra guia os leitores a uma jornada surpreendente que se baseia nos ensinamentos de diversos sábios.
A narrativa acompanha a vida de José Servo, que explora diferentes caminhos em sua busca do autoconhecimento. No cargo de Magister Ludi, que é o mestre do jogo das contas de vidro (ou o Jogo de Avelórios), ele embarca em uma viagem que desvenda o profundo significado da história, e isso o leva a questionar as estruturas da própria existência e, em última análise, acaba provocando uma grande mudança interior. O livro termina com a história de Tito, seu último discípulo, e a conclusão sombria, que nos causa profundas reflexões.
Em Castália – sociedade que se assemelha a uma comunidade monástica –, os intelectuais vivem isolados em uma cidade cuja estrutura é dividida em vários grupos, cada um dedicado ao estudo de uma disciplina específica. Há, no entanto, o grupo dos jogadores de Avelórios, que funciona como força unificadora, abrangendo todas as áreas do conhecimento. O verdadeiro significado do jogo reside na sua capacidade de integrar com perfeição os múltiplos campos do intelecto, permitindo, por exemplo, a experiência dos saberes matemáticos por meio de estruturas musicais.
No entanto, é crucial reconhecer que a apresentação do mundo castálico funciona apenas como pano de fundo da obra, pois a verdadeira essência do livro está na narrativa de José Servo, o habilidoso mestre do Jogo de Avelórios. Sua vida serve de reflexão para os leitores, levando-os a pensar sobre suas próprias vidas. Embora seja um homem sereno, o percurso de José Servo rumo à transcendência é marcado por momentos de incerteza, pois o protagonista faz da dúvida um catalisador da fé.
Um aspecto fascinante do livro é como José Servo vivencia momentos de alegria e de tristeza ao longo da narrativa. Ao invés de o protagonista se concentrar na busca de sua felicidade, o seu caminho rumo à transcendência o leva a procurar a serenidade e a harmonia, que são menos vulneráveis ao impacto da tristeza. O que mais nos intriga durante a leitura é que essas emoções não são alcançadas por meio da entrega aos prazeres, mas por meio do ato de contemplação de uma música, de um poema, da beleza da natureza ou da vastidão do universo. Nesse sentido, José Servo se realiza na contemplação da amizade, do amor e das artes.
O percurso do Magister e a sua insatisfação com os privilégios que observa é verdadeiramente notável. Ele é um personagem de grande complexidade, característica frequentemente encontrada nas obras de Hermann Hesse. No livro, o autor explora fortes amizades, como a entre José Servo e Fritz Tegularius, grande jogador de Avelórios. A relação que Servo cria com Plínio Designori oscila entre a amizade e o confronto ideológico e funciona como catalisador para as decisões transformadoras do personagem. Embora a narrativa se desenrole de forma lenta, ela é consistente.
“O mundo estava cheio de devir, cheio de história, cheio de tentativas e de um começo eternamente novo. Talvez caótico, mas era a pátria onde nascem e o solo onde germinam todos os destinos, todos os enaltecimentos, todas as artes, toda a humanidade.”
Sem ação, a obra sustenta mais um sentido de contemplação e de introspecção. Até mesmo os conflitos centrais são lutas internas do protagonista. Mesmo assim, a obra não deixa de criticar a sociedade utópica e aquela que vigorava em sua época. Enquanto Castália se abstém de interferências políticas no mundo, o livro denuncia os intelectuais do seu tempo pela sua falta de envolvimento político e critica aqueles que esquecem o quão importante é a história, a ilusão de liberdade que o liberalismo vende e a natureza opressiva que existe em regimes marcados pelo totalitarismo e pela hierarquização.
O trabalho literário deixado por José Servo é fabuloso. Mesmo depois de uma leitura longa, continua a ser um desafio mergulhar nos domínios metafísicos e envolver-se com as “Três Existências”. Essas narrativas cativam pela sua potência, seu fluxo rítmico e suas mudanças repentinas de circunstância. Nessas obras, vislumbramos José Servo como se a sua consciência se manifestasse a cada linha. É evidente que Hermann Hesse, no auge de sua maturidade, procurou criar contos que atestassem as suas afinidades com as crenças hindu.
O capítulo “O Conjurador de Chuva” explora a ideia de que, embora os primeiros humanos não possuíssem a sofisticação da racionalidade, os seus sentidos e a sua intuição eram altamente avançados. Investiga o significado do medo que eles sentiam em relação à natureza, aos elementos, aos animais e às doenças, e como isso contribuiu para o seu crescimento espiritual. Em contraste, na nossa era moderna marcada pelo excesso tecnológico, a humanidade perdeu de vista o propósito e o significado da vida.
“O Confessor” centra-se na segunda manifestação de José Servo, especificamente na forma do arrependido Josephus Famulus. Este capítulo investiga o tema do serviço altruísta, um princípio cristão fundamental que permeia toda a narrativa. Dion Pugil transmite sabedorias a Josefo Famulus, enfatizando a importância de não tentar converter pagãos satisfeitos, mas focar naqueles que são infelizes e que precisam de assistência. Pugil observa astutamente que, mais cedo ou mais tarde, a natureza passageira de sua felicidade os levará a buscar consolo em Deus.
“A Encarnação Hindu” enfatiza a prática da ioga, especificamente da disciplina seguida pelos iogues ascéticos. Aqui, o autor mergulha no reino da filosofia e da espiritualidade orientais, inspirando-se no taoísmo e no budismo, para apresentar uma narrativa cativante da vida de Dasa e um retrato vívido da natureza ilusória da existência, conhecida como maia.
O jogo das contas de vidro é uma ode ao indivíduo, enfatizando a importância da autodeterminação, do serviço e da busca por um espírito nobre. Aqueles que aspiram ao crescimento pessoal contribuem positivamente para o mundo ao seu redor. Por meio da vida de José Servo, assistimos a um percurso caracterizado por momentos de incerteza, mas também por momentos de profundo crescimento e iluminação. Assim como São Cristóvão, José dedicou-se a servir quem ocupava posições de poder, buscando transcender as próprias limitações e despertar para novas possibilidades. Nesse sentido, o livro investiga o conceito de uma aristocracia espiritual, que tem o poder de elevar um indivíduo comum a um nobre em uma única vida.
As seções do livro se entrelaçam, e cada parte ilumina as outras. Este é um livro que necessita de um consumo lento, apreciando sua complexidade e beleza. O jogo das contas de vidro está longe de ser uma leitura simples e certamente é uma obra que não tem como objetivo entreter; em vez disso, Hermann Hesse investiga domínios mais profundos. Nesse sentido, a vida de José Servo espelha grandes transformações, e aquele que decidir enfrentar a obra não passará indiferente ao poderoso universo criado por Hermann Hesse, universo que é ao mesmo tempo sereno e harmônico, agressivo e caótico.
“E logo em seguida se despertava de novo, devia-se deixar penetrar de novo no coração as torrentes da vida, e nos olhos o terrível, belo e atroz fluxo de imagens sem fim, inelutável, até ao próximo desfalecer, até à próxima morte. A morte era talvez uma pausa, um curto e ínfimo repouso, o tempo de se retomar alento, mas depois tudo continuava, e éramos de novo uma das milhares de figuras na dança selvagem, embriagante e desesperada da vida. Ah! Não havia extinção, não havia fim.”