anna v. 17/01/2022
Uma viagem entre gregos e troianos
Essa não é uma leitura que se faça de forma leve, num fim de semana. Além do peso que traz por si só – considerada a primeira obra da literatura ocidental, um clássico dos clássicos – leva-se um tempo para entrar na onda do livro, por assim dizer. Mas no fim, é uma viagem que sem dúvida vale ser empreendida.
A edição é excelente, e a tradução de Frederico Lourenço é incrível. É claro que é uma linguagem rebuscada, cheia de segundas pessoas do plural e de conjugações verbais estranhas no imperativo. Mas graças a essa tradução (e aos textos introdutórios, todos maravilhosos) é possível entender tudo o que está acontecendo.
E o que acontece nessa história? O final da Guerra de Tróia. Esse é o pano de fundo de tudo. Estamos no nono ano de guerra, os gregos estão sitiando Tróia, que não se rende. Estão todos exaustos. Tudo já aconteceu nessa guerra, e ela não acaba. Até que temos um momento ápice do que hoje poderíamos chamar de masculinidade tóxica. Sim, temos uma típica situação de “birra” entre Aquiles, o melhor guerreiro grego, filho da deusa (ninfa) Tétis e de Peleu, rei de Ftia, e Agamemnon, o comandante dos exércitos gregos, irmão de Menelau, que teve a esposa Helena “roubada” por Páris/Alexandre, príncipe de Tróia, desencadeando a guerra, anos antes.
A birra se dá pelo seguinte. Aquiles raptou uma mulher, Briseida, como espólio do saque de uma cidade. Agamemnon, depois de perder sua própria mulher-espólio, Criseida (que era filha de um sacerdote, que oferece um resgate pela filha, e quando Agamemnon recusa, esse pai ultrajado lança uma maldição sobre o exército grego, uma tremenda confusão), toma Briseida para si. Aquiles fica enfurecido. Exige desculpas de Agamemnon, que se recusa a pedir desculpas. Aquiles entra numa de: “Ah é? Então não luto mais”. E então ele e sua trupe, o exército dos Mirmidões, se recusa a lutar, o que traz um problemão para os gregos, que começam a perder muitas batalhas. Todos, inclusive seus amigos e conselheiros Pátroclo, Ulisses, Nestor e Ájax, pedem a Aquiles que reconsidere, que seja razoável, que pense um pouco no coletivo e não apenas no seu orgulho, mas ele é inflexível. Agamemnon se dispõe a devolver Briseida (e garante que nem tocou nela) e mais uma penca de tesouros, até oferece a mão da própria filha a Aquiles, oferece tudo, menos um pedido de desculpas, que é a única coisa que Aquiles quer. Aí a situação fica nesse impasse, honestamente, ridículo (aos olhos de hoje, é claro).
Por fim Pátroclo, o melhor amigo de Aquiles, seu irmão-em-armas, se veste com as roupas de Aquiles para animar o exército, e parte para o campo de batalha. Lá, é morto por Heitor, o melhor dos guerreiros troianos, irmão de Páris, e filho preferido do rei Príamo. Era isso que faltava para Aquiles voltar a lutar, enlouquecidamente. Seu luto por Pátroclo, o amor que os unia, é muito mais do que a união em campo de batalha, é mais do que irmãos, era um amor obsessivo, até. Os gregos conseguem, a duras penas, recuperar o corpo de Pátroclo, que Aquiles vela por dias, num grande funeral, como se ele fosse um rei.
Aquiles volta à luta enfurecido, e por fim mata Heitor em um combate. Para acrescentar insulto à injúria, profana e arrasta durante dias a fio o corpo do guerreiro troiano, o que é considerando um ultraje. Até que Príamo vai até Aquiles suplicar o corpo do filho, e Aquiles por fim concorda, e os troianos podem então velar seu guerreiro mais valoroso. E aí termina a história.
Mas como então são 720 páginas? São várias as explicações.
Primeiro, as cenas de batalhas. São muitas, muitas, muitas, mesmo. Muito mais do que eu poderia esperar. As lutas são descritas com riqueza de detalhes, assim como os lutadores. Fulano, que era filho de Beltrano e neto de Sicrano, que vivia em tal lugar, onde havia plantações disso e de aquilo, onde corriam os rios tais e quais, que fazia fronteira com este e aquele país, este Fulano lutou bravamente com o Fulano 2 (segue descrição semelhante), e jogou sua lança feita de bronze X e com cabo de madeira Y, mas ela pegou de raspão no escudo feito de metal Z com entalhes K, e então ele revidou dessa e daquela forma, e a lança entrou por um olho e saiu por trás da cabeça – ou: furou sua barriga e os intestinos saíram pela frente – ou: seu cérebro escorreu pelo ferimento – ou: atingiu-lhe direto no coração e a morte lançou sobre ele seu manto. E assim transcorrem muitíssimas páginas, em relatos dolorosamente longos e profundamente tediosos...
Segundo: o plano dos deuses. Em paralelo à luta entre gregos e troianos há a luta entre os deuses – tanto os olimpianos quanto os deuses menores. Alguns capítulos são inteiramente dedicados às infinitas intrigas e fofocas entre esses seres, altamente mexeriqueiros, vaidosos, mesquinhos e vingativos. Apolo e Hera sempre defendendo os troianos, Atenas e Zeus sempre do lado dos gregos, e muitos outros aí no meio. Eles se fingem de humanos para enganar mortais, eles retiram um guerreiro do meio do campo de batalha para salvá-lo, eles jogam uma névoa na frente dos olhos de um exército... É interessante, sem dúvida, mas também cansativo.
Terceiro: os discursos. Sim, porque ninguém fala, todo mundo só discursa. O que em si não é um problema, mas faz aumentar demais o número de páginas. No final, por exemplo, Príamo pergunta a Hermes se o corpo de Heitor ainda está inteiro ou se foi devorado pelos cães. A resposta é: o corpo está inteiro e não foi devorado pelos cães. Mas, sem brincadeiras, para essa pergunta e essa resposta são necessárias duas páginas inteiras.
Quarto: os nomes e os epítetos. Levei um tempo para entender que cada personagem, seja mortal ou deus, ou cada grupo, pode ser identificado por diferentes nomes ou epítetos. Assim, os gregos podem ser os Aqueus ou os Argivos ou os Dânaos. Tróia é também conhecida como Ílion (daí o nome “Ilíada”). Tem também substantivos que parecem os patronímicos russos. Aquiles era filho de Peleu, então Aquiles é “o Pelida”. Heitor era filho de Príamo, então é “o Priâmida”. Agamemnon e Menelau são filhos de Atreu, então são “os Atridas”. Zeus é filho de Cronos, então é “o Crônida”.
E os epítetos são maravilhosos. “Aquiles de pés velozes”, “Heitor do elmo faiscante”, “Ulisses de mil ardis” (e era mesmo, hahaha!), “Hera dos olhos de plácida toura” (que excelente!), “Ares perfurador de escudos” (sem contar vários personagens que são “Fulano, dileto de Ares”), “Tétis de pés prateados”, “Aqueus de lindas cnêmidas” (“cnêmidas” é uma palavra que aparece o tempo todo e eu não conhecia: é uma espécie de caneleira usada como armadura para essa parte da perna), ou então os nomes vêm acompanhados de adjetivos simples: o divino Heitor, Crônida terribilíssimo, o sagaz Hefesto.
Então não é de imediato que você “entra no clima” do livro – pelo menos, não foi comigo. Li o livro em dois momentos, com meses de intervalo entre uma parte e outra.
Adorei fazer essa leitura, é realmente um mergulho em outro universo, e a origem de tantas características heroicas que valorizamos até hoje. Para mim, ficou claro que o maior herói é Heitor, que se sacrifica por Tróia, e não Aquiles, que só busca fama e glória. Aliás, os troianos são bem melhores, em geral, do que os gregos. Príamo é um rei excelente, e seu apelo pelo corpo do filho no último Canto (XXIV) é comovente. As mulheres, Hécuba e Andrômaca (mãe e esposa de Heitor) também são muito heroicas, a seu modo. Já os gregos são um desastre. Aquiles, esse pavão. Agamemnon, idem, arrogante e vaidoso. Menelau, inseguro sempre à sombra do irmão. Sobram o ardiloso Ulisses, verdadeiro estrategista da história (ansiosa para ler sobre seu retorno a Ítaca em A Odisseia!), o razoável Nestor, sempre tentando chamar os outros à razão, e Pátroclo, a figura mais simpática do lado grego.