Lucas 14/09/2022
Laboratório literário: no mais cômico dos livros de Dostoiévski, a graça não é explícita
Quase no fim do período de dez anos recluso e prestando serviços militares punitivos, acusado de agitação popular, Fiódor Dostoiévski (1821-1881) apresentava à Rússia uma obra "estranha": A Aldeia de Stepántchikovo e seus Habitantes, lançado em 1859. A pecha de livro "estranho" adquire um significado bem particular dentro do rol de obras dostoievskianas: o estilo dele, na maior parte das vezes incompreendido na época, é cirúrgico em aspectos humanos e psíquicos, as quais o tempo só reforça.
Mas nesse livro há um traço inovador; Dostoiévski, o escritor que mais bem descreve o decrépito, seja ele moral ou literal como ponto de partida para uma trajetória redentora, em A Aldeia de Stepántchikovo surge com um outro viés: o cômico, em detrimento do trágico que sempre o definiu. É o que, pelo menos, a maioria das sinopses (inclusive a da sempre ótima edição da Editora 34) traz como rótulo definidor do livro.
Entretanto, aqui vai uma ponderação séria: pelo menos a mim, foram pouquíssimos os momentos de riso que a leitura causou. Na verdade, a premissa parece engraçada, pois a narrativa se constrói em torno de um bufão, um bobo da corte, que é "promovido" de visitante a administrador de uma propriedade rural (a tal aldeia de Stepántchikovo) através não de méritos, mas de um cinismo poucas vezes visto. Trata-se de Fomá Fomitch Opískin, protagonista da obra. Inicialmente, ele é apresentado como alguém que cuidava do general Krakhótkin, segundo marido da mãe do coronel Iegor Ilitch Rostániev. Com a morte do general, a mãe, uma amiga da família e Fomá Fomitch vão viver em Stepántchikovo, propriedade de Rostániev. A teia de personagens principais é completada pelo narrador Serguei Aleksándrovitch, jovem protegido de Rostániev que vivia em São Petersburgo e que viaja até Stepántchikovo após tomar conhecimento de alguns acontecimentos estranhos que lá ocorriam.
É através dos olhos de Serguei que o leitor entra em contato com os tais "habitantes" da aldeia: Rostániev, irritantemente bondoso e altruísta, com seus filhos Iliá e Aleksandra (Sacha); Tatiana Ivánovna, a já recorrente figura feminina de Dostoiévski, marcada por uma personalidade histérica; Nastássia Iejevíkin, preceptora do casal de filhos de Iegor Ilitch; o obscuro Ivan Mizíntchikov, primo de Serguei; e os funcionários da aldeia, Gavrila, Falaliei e Vidopliássov.
Entre Rostániev e Fomá Fomitch desenvolve-se uma rivalidade surda, que eventualmente sucumbe diante da ingenuidade do primeiro. Fomá é o mais marcante personagem do livro: um grande parasita, um verme odioso, arrogante e desprezível, a qual pode parecer cômico nos primeiros momentos, mas logo irá deixar o leitor de saco cheio diante de tanta volúpia maléfica. Protegido pela maioria dos habitantes da propriedade, seu poder não vem de sua própria astúcia, o que poderia lhe conferir um relativo grau de admiração, mas sim de um grau de conformismo revoltante, especialmente relacionado ao proprietário de Stepántchikovo. Aos poucos, Serguei Aleksándrovitch narra e se une ao leitor num ódio a Fomá Fomitch, que faz Iegor Rostániev de gato e sapato.
Mas Dostoiévski jamais abre mão de ensinar e convidar à reflexão. No caso de Fomá Fomitch, sua origem humilde e posteriores humilhações fazem dele um tipo às avessas de qualquer protagonista de uma boa lição de moral. E é aí que está a reflexão do autor: como um indivíduo antes humilhado e ridicularizado reage diante do mundo quando ele vira esse jogo? Ele foi capaz de aprender algo quando sofria ou vai apenas acumular ódio e usará isso como matéria-prima para a sua nova personalidade? A humildade pode ser construída ou blindada nesse processo? Pode parecer meio bobo tudo isso, mas é uma reflexão com implicações que vão desde a criança que sofre bullying na escola até o adulto em sua vida profissional.
Outro ponto destacável é fato do romance acabar significando um laboratório para as grandes obras de Dostoiévski que viram à tona dali a alguns anos, opinião reforçada no posfácio do tradutor Lucas Simone (editora 34): resquícios da eterna Sônia, de Crime e Castigo (1866) podem ser observados na preceptora Nastássia Iejevíkin; o príncipe Míchkin (O Idiota, 1869) é uma versão expandida do coronel Iegor Rostániev; Fomá Fomitch é o "molde" do famoso "homem do subsolo", arquétipo presente em praticamente todas as obras do autor dali em diante, caracterizados por mentes atribuladas, por vezes criativas, mas que almejam aceitação social e fazem disso uma luta constante. E, fundamentalmente, a própria narrativa, majoritariamente histérica, é concebida num ritmo que se repete em maior ou menor grau nas obras posteriores, notadamente as de maior sucesso de Fiódor Dostoiévski.
Em A Aldeia de Stepántchikovo, o famigerado lado cômico de Dostoiévski é apenas "semeado" nas linhas. Acredito que a responsável pelo prisma cômico do livro é a percepção do leitor, a qual poderá ou não interpretar como engraçadas muitas passagens e raciocínios de Fomá Fomitch. Entretanto, não se engane: cada linha destes momentos possui alguma mensagem oculta muito mais profunda ou pequenos convites à reflexão. Mas ignorando-se essa discussão sobre a comicidade ou não do livro, A Aldeia de Stepántchikovo e seus Habitantes é uma obra dinâmica, quase toda escrita em diálogos, com um desfecho surpreendente e na qual se percebem aqui e ali os sinais que consolidariam Fiódor Dostoiévski na literatura universal.