Butakun 15/06/2016
O náufrago, o usurpador e o construtor...
É gratificante quando, enfim, alcançamos o final de uma obra literária antes abandonada por motivos diversos e após 941 páginas e uma verdadeira convulsão de sentimentos, resta aquele que, aqui, se detém como mais merecedor de citação: contemplação. Nunca fui muito fã de ficção histórica. A bem da verdade, nunca gostei muito de história nos tempos de escola. Sempre preferi geografia. Coisa estranha. Mas o tempo - e as palavras - costumam provocar severas mudanças. E assim foi. Primeiro indiretamente, com Dostoiévski, que passava longe do romance histórico mas recheava seus livros com o contexto social e político de sua época e, dessa forma, nos fazia entrar de cabeça na sociedade russa do século XVIII. Depois veio o Cornwell com A Busca do Graal e As Crônicas de Artur, sendo a primeira supostamente encenada nos séculos V-VI e a segunda em meados do século XIV, ambas no atual Reino Unido e arredores (ainda não comecei a ler As Crônicas Saxônicas, até agora compostas por nove livros que tomam por palco os séculos IX e X - estou me preparando psicologicamente e instrumentalmente para isso). Até Sir Walter Scott e seu Ivanhoé, de 1820, romance passado no últimos anos do século XII, também na Inglaterra, conseguiram adotar um lugarzinho no coração e na mente deste singelo leitor. E, por fim, o Ken Follet e sua mais aclamada obra: Os Pilares da Terra. Daí, já era. Se há uma forma bastante divertida e proveitosa de estudar história e iniciar sua própria pesquisa histórica, essa é a literatura de ficção histórica. Requer alguns cuidados, naturalmente, no que se refere à precisão dos fatos citados e ao que deveras é ou não ficção - se bem que algumas personagens são tão humanas, tanto na bondade quanto em sua antagonista, que inevitavelmente nos obrigamos a imaginá-las reais, tangíveis. E talvez, de fato, o tenham sido (nunca de sabe, não é mesmo?). Agora voltemos ao Follet e ao livro em questão. Tudo gira em torno da construção de uma catedral, no priorado de Kingsbridge, na Inglaterra, em meados do século 12. Aos que não sabem, esse tipo de comunidade, o priorado, é bastante comum na Igreja Católica, mas não se restringe a ela, alcançando também outras vertentes religiosas. Naquela época, após a morte do Rei Henrique e dada a falta de um sucessor - seu único filho legítimo, William, havia morrido em um suspeito naufrágio no Canal da Mancha, um grave conflito se iniciou entre Estevão, sobrinho do rei, tido por alguns como "O Usurpador", coisa que realmente era, e Matilde, sua filha legítima. Tal período, historicamente conhecido por ?A Anarquia?, perdurou por quase 20 anos, provocando um verdadeiro caos no reino. E no meio disso tudo, temos Kingsbridge, uma pequena comunidade religiosa independente no Condado de Shiring, sul da Inglaterra. É lá que quase tudo acontece - não vou entrar em muitos detalhes pois detesto spoilers. É lá que somos apresentados a Ellen, uma jovem à espera de uma criança cujo pai acaba desafortunadamente enforcado (sim, o náufrago); a Tom, um construtor que sonha em um dia projetar a mais bela catedral que o mundo ainda não vira, e sua família; a Phillip, um jovem prior que aceita um bebê órfão em seu mosteiro e passa a tratá-lo como a um filho; a família Hamleigh, um bando de oportunistas sem quaisquer méritos que pudessem ir além da sorte e da esperteza; a Aliena, filha de Bartholomew, conde de Shiring, que após ver o pai ser preso por traição acaba sendo estuprada na frente do próprio irmão, Richard; ao jovem, ambicioso e inescrupuloso arcediago Waleran Bigod, que sonha com uma arquidiocese e talvez até com o papado; a Remigius, subprior de Kingsbridge, um homem orgulhoso e sedento por algum tipo de vingança após ser derrotado na eleição para líder do priorado; e outros tantos complexos e interessantíssimos indivíduos. O livro começa com o enforcamento do único sobrevivente do naufrágio do White Ship (Barco Branco, literalmente), no qual William, herdeiro legítimo de Henrique, e boa parte da corte real morrera, e segue até pouco depois da morte de Tomás Becket, arcebispo de Canterbury, assassinado injusta e cruelmente por cavaleiros de Henrique II, filho de Matilde e, por conseguinte, neto de Henrique, que havia assumido a Coroa após a morte de Estevão em 1154, acontecimento que de tão chocante para a comunidade cristã européia mudou drasticamente o tom da monarquia inglesa e, de certa maneira, intensificou o atrito existente entre entes da realeza e da Igreja (o final criado pelo Follet para esse impasse é de fazer chorar de tão tocante, sutil e bem elaborado). Nesse interim, entre 1123 e 1174, há romance, drama, mistério, traições, milagres, e outras tantas coisas mais, tudo que um bom livro do gênero precisa ter, ainda mais sendo tão longo. Durante a leitura, cheguei a pensar que ou o Ken Follet ama muito seus vilões ou odeia ferozmente seus ?mocinhos?, mas, não decepcionando, o final, de alguma maneira, compensa tudo, e a obra em si, como um todo, o faz ainda mais, pois nos mostra personagens que mesmo ao tentar fazer o bem, dando o melhor de si em prol daquilo em que acreditam, erram e prejudicam a outros que se encontram, talvez, na mesma posição, onde se pode errar pelo acerto e acertar pelo erro.