jota 07/06/2022BOM: literatura de entretenimento bastante eficiente, criada para deixar o leitor viciado na narrativaLido entre 08 de maio e 05 de junho de 2022.
Avaliação da leitura: 3,7/5,0
Esse não é o tipo de narrativa que costumo ler com frequência, embora eu seja um leitor eclético, então todos os gêneros literários são bem-vindos. Importa a identificação, a empatia que vai ocorrer ou não entre leitor e livro durante a leitura. Valeu a pena ler o primeiro livro da trilogia Os Pilares da Terra, que leva o mesmo título do volume publicado pela primeira vez em 1989? Foi quase um mês dedicado ao livro de Ken Follett, entre outras leituras mais curtas, mas valeu a pena, claro. Com algumas ressalvas, porém....
Ficção histórica passada na Inglaterra medieval, de enorme sucesso, com milhões de exemplares vendidos mundo afora, o volume traz inúmeras subtramas decorrentes da trama principal, centrada na construção de uma catedral gótica, trabalho que durou longos anos e enfrentou dificuldades, disputas, percalços, rixas, traições, inveja... Desfilam aqui inúmeros personagens: reis, damas, cavaleiros, monges, bispos, arcebispos, construtores, pedreiros, artesãos etc. Eles circulam por igrejas, mosteiros, catedrais, castelos, cidades muradas, florestas, pedreiras, plantações etc. -- em infindáveis descrições desses ambientes algumas vezes.
Temos sangrentas cenas de batalhas, outras cenas referentes os trabalhos rotineiros daqueles tempos (como a criação de ovelhas para o comércio da lã), outras ainda permeadas de luxúria e sexo -- incluindo um violento estupro (e qual estupro não é violento?), mas me refiro ao da personagem Aliena, que seu irmão Richard, um menino ainda, foi forçado a testemunhar, além de perder um pedaço de uma orelha, cortada pelos estupradores --, muitas páginas dedicadas às intrigas eclesiásticas (o poder religioso era tão forte ou mais do que o político) e disputas palacianas (reinava a anarquia então), testemunhamos um incêndio devastador praticado por um garoto e muitos outros episódios marcantes.
A ação é sempre contínua, parece que estamos assistindo a um filme de aventuras atrás de outro, porque as cenas são imagéticas, vão se desenrolando em frente aos nossos olhos sem parar, claramente. Eu ficava pensando em quantas produções cinematográficas poderiam ser geradas a partir das histórias imaginadas pela eficiente escrita de Follett. Sobre seu livro li a opinião de diversos leitores no Brasil e no exterior e a imensa maioria apreciou o livro praticamente sem restrições. Alguns afirmam que Os Pilares da Terra é o livro que mais apreciaram ler entre todos os que tiveram em mãos até agora, outros pensam em relê-lo algum dia, outros ainda acharam tudo ótimo, altamente excitante, não conseguiam parar de ler etc.
Mas há também uma minoria que se entusiasmou apenas de início -- porque o autor começa deixando o leitor intrigado com os acontecimentos que precedem e culminam no enforcamento de um homem – que pode ser inocente -- sobre o qual se sabe muito pouco e menos ainda sobre o motivo de estar sendo punido com uma morte tão cruel. E também há uma mulher misteriosa e uma criança, possivelmente o filho de ambos, que deverá ter importante papel na história, assim como ela --, leitores que depois perderam o entusiasmo com tantas reviravoltas que a narrativa apresenta e a quantidade de personagens e suas histórias a seguir. O que transformou a ideia central da construção da catedral num enorme painel a exigir muitas páginas de leitura. Bem, é preciso levar isso em conta também...
Ken Follett é um autor que eu conhecia de nome; há muito tempo, numa madrugada vi na televisão um filme adaptado de sua obra homônima A Chave de Rebecca (1980), que me pareceu muito bom. Mas nunca havia lido nada dele por certas divergências de ordem estética, literárias mesmo que mantenho, as tais ressalvas lá do início. É claro que quem carrega certa bagagem literária não vai colocar o livro dele no mesmo balaio com clássicos como Crime e Castigo (Dostoievski), A Montanha Mágica (Thomas Mann), Germinal (Emile Zola), Ilusões Perdidas (Balzac), O Nome da Rosa (Umberto Eco) etc. Porque os livros de Follett, mesmo que tragam diversas informações, foram escritos basicamente para entreter, e não há nenhum mal nisso, claro.
No caso dele, assim como de outros autores tão diversos como Stephen King, Scott Turrow, Dan Brown, Philip Pullman etc., a atividade de escrever parece adquirir uma dimensão quase industrial, de produção em série, se é que isso seja possível. Esses autores são todos respeitáveis, como diria Jonathan Franzen (pelo menos em relação a King e Turrow, conforme ele escreveu em Como Ficar Sozinho, Companhia das Letras, 2012), mas seus contratos editoriais devem falar bem mais alto do que a dita arte que praticam, a literária (ainda pensando como Franzen).
Li de Noah Gordon, O Físico e O Último Judeu, livros que apreciei bastante, exemplos de literatura de entretenimento com bastante qualidade. Li ainda vários John Grisham, outro grande criador de best sellers e até mesmo achei ótimo seu livro de contos Caminhos da Lei. Mas continuando e ressalvando: mesmo com todas as suas qualidades, Os Pilares da Terra, não proporciona o mesmo prazer estético e literário que envolve um leitor que tenha em mãos, por exemplo, O Nome da Rosa, a obra-prima do italiano Umberto Eco. Uma narrativa que também se passa na Idade Média, mas em outro contexto.
Vejamos um resumo do livro, que se passa em sete dias apenas, o mesmo tempo da criação do mundo conforme a tradição cristã: “O ano é 1327. Os beneditinos de uma rica abadia italiana são suspeitos de heresia, e o irmão William de Baskerville chega para investigar. Quando sua delicada missão é subitamente ofuscada por sete mortes bizarras, o irmão William se torna detetive. Suas ferramentas são a lógica de Aristóteles, a teologia de Tomás de Aquino, os insights empíricos de Roger Bacon -- todos aguçados ao extremo por um humor irônico e uma curiosidade feroz.” Citei parte da sinopse do Goodreads, por preguiça mesmo e também porque li o livro há vários anos, não me lembro dele com tanta clareza, mas o essencial está aí. Comparando, pois: em Follett não há, como há em Eco, a profundidade de pensamento, lances filosóficos, background histórico profundo, frases memoráveis para marcar nossa memória etc.
Isso diferencia bastante os livros de um e outro autor. Numa brincadeira, posso dizer que O Nome da Rosa é complexo, um livro cabeça, enquanto que Os Pilares da Terra não é um romance apenas cabeça, também é tronco e membros, mas tudo decepado, com muito sangue escorrendo pelas partes. O Nome da Rosa foi parar na lista do jornal francês Le Monde dos cem melhores livros do século XX (ocupa o 14º. posto). Umberto Eco (1932-2016), seu autor, não foi apenas um escritor respeitado, também um ensaísta e professor na Universidade de Bolonha. Em suma: Eco era um intelectual. Ken Follett é um escritor muito bem sucedido, construtor de tramas eficientes, um grande vendedor de livros, criador de best sellers como poucos.
Os episódios narrados em Os Pilares da Terra, se não dizem tanta coisa ao intelecto quanto Crime e Castigo ou O Nome da Rosa, é porque Follett trabalha principalmente com as emoções do leitor. Inegavelmente, por outro lado, nos deixam interessados em muitas coisas -- por exemplo, era um hábito então tomar cerveja no desjejum, como até as crianças faziam? --, nos deixam em suspense também, torcendo para o monge Philip, desejando o castigo ou até a morte dos personagens maus -- o boçal William de Hamleigh, para ficar apenas com um, é cruel ao extremo, nos faz querer sua morte inúmeras vezes, mas habilmente Follet a deixa para o final, claro --, acompanhamos com apreensão a saga familiar de Tom Construtor, por vezes nos comovendo, como quando do nascimento de Jonathan e a morte de Agnes, sua mãe, além de outros episódios interessantes, muitos.
Haveria outras coisas mais para dizer, mas o fato é que minha avaliação da leitura que fiz de Os Pilares da Terra, embora não tenha sido excepcional, ao menos foi muito boa. Estou avaliando minha leitura da narrativa, como o livro me bateu, como atingiu meu intelecto, coisas assim, não a obra em si, apreciada por milhões de leitores desde sua publicação. Isso posto, quero finalizar com algo mais substancioso, mencionando o autor de um dos livros de ficção científica que mais apreciei (e nem gosto tanto assim do gênero): Ray Bradbury (1920-2012), do inesquecível Fahrenheit 451, originalmente lançado em 1953.
Fahrenheit 451 é uma distopia em que bombeiros queimam livros, entre outras coisas; os personagens vivem numa sociedade totalitária, controlada ferreamente pelo Estado, onde os livros são proibidos porque fazem as pessoas desenvolver o senso crítico, questionar o sistema e assim derrubar ditaduras. Essa ideia desenvolvida por Bradbury dialoga com a de outro autor, o poeta russo naturalizado americano, Joseph Brodsky (1940-1996) que (não sei se influenciado ou não pelo livro de Bradbury) registrou anos depois: “Existem crimes piores do que queimar livros. Um deles é não lê-los.” Bem profundo isso, hein?
Desse modo, e voltando ao livro de Follett, seu asqueroso personagem William de Hamleigh, marcado por infinita ignorância e crueldade, queimava cidades, não livros, que eram raros na época em que se passa a narrativa, mas certamente o faria se tivesse a oportunidade. É isso, então. Agora resta ler Mundo Sem Fim e Coluna de Fogo, respectivamente os volumes II e III da Trilogia Kingsbridge - Os Pilares da Terra. Mas não tão já.