Marc 09/12/2023
Esse é o famoso texto em que Barthes afirma que a língua é fascista. Há muitos anos eu evitava esse livro, porque conheço vários textos do autor e podia imaginar muito bem o que viria pela frente. Mas, por se tratar do tema que pesquiso, não poderia evitar muito mais. Assim, começo explicando essa afirmação e sua ligação com a literatura para fazer a crítica em seguida.
A língua é fascista porque expressa toda a história de dominação de povos, de valores e ideias. Em sua formação histórica, serviu (na verdade, serve) para excluir do poder grupos, classes, identidades, povos inteiros. No caso da França, a língua exclui, ainda, os povos colonizados; ela é um instrumento de imposição da visão de mundo do europeu. se analisarmos detidamente a construção da língua, podemos encontrar uma visão de mundo, uma interpretação sobre a realidade que é transmitida como fato e não é sequer questionada. Aqui, Barthes nos lembra que a língua é um conjunto de regras e que "pune" aqueles que não a seguirem:
"A linguagem é uma legislação, a língua é seu código. Não vemos o poder que reside na língua, porque esquecemos que toda língua é uma classificação, e que toda classificação é opressiva: ordo quer dizer, ao mesmo tempo, repartição e cominação. Jakobson mostrou que um idioma se define menos pelo que ele permite dizer do que por aquilo que ele obriga a dizer. Em nossa língua francesa,(e esses são exemplos grosseiros),vejo-me adstrito a colocar-me primeiramente como sujeito, antes de enunciar a ação que, desde então, será apenas meu atributo: o que faço não é mais do que a consequência e consecução do que sou; da mesma maneira, sou obrigado a escolher sempre entre o masculino e o feminino, o neutro e o complexo me são proibidos; do mesmo modo, ainda sou obrigado a marcar minha relação com o outro recorrendo quer ao tu, quer ao vous; o suspense afetivo ou social me é recusado. Assim, por sua própria estrutura, a língua implica uma relação fatal de alienação. falar, e com maior razão discorrer, não é comunicar, como se repete com demasiada frequência, é sujeitar: toda língua é uma reição generalizada." (p. 13 - 14).
O elemento gregário é inevitável, pois sem que o signo seja socialmente reconhecido, não terá validade; é assim que o poder é exercido. Mesmo que exista uma possibilidade de ruptura, o social tende a sempre incorporar na cultura, nos valores, aquilo que foi inicialmente revolucionário. Essa é a sina da literatura, que deveria ser o lugar da invenção constante, segundo o autor. Somente com a criação infinita é possível romper o gregarismo da linguagem - mesmo que esse trabalho seja como rolar a pedra de Sisifo, onde o significado novo sempre é incorporado à sociedade. No entanto, se houver uma enorme mobilização, será possível criar uma nova literatura, com signos instáveis, onde as pessoas não consigam decifrar do que se trata e os valores sociais sejam destruídos.
Caso alguém ainda tenha dúvidas sobre o terreno que estamos pisando, a confirmação vem um pouco mais à frente: fala em função utópica da língua, evocando Mallarmé e Marx. "'Mudar a língua', expressão mallarmeana, é concomitante com 'Mudar o mundo, expressão marxiana: existe uma escuta política de Mallarmé, daqueles que o seguiram e o seguem ainda." (p. 25). Acredito que depois desse ponto, por mais rebuscada que seja sua linguagem, usando termos incomuns e mesmo uma escrita atípica em termos estruturais, pouco resta a explicar sobre Barthes. É hora de fazermos a crítica de amontoado de besteiras.
Tudo começa pela "escolha ética", ou seja, ficar ao lado dos oprimidos, como dizia Walter Benjamin, para só então criar um estado de caos revolucionário. Barthes está inserido em um grupo de autores radicais que se notabilizou por fazer uso do estruturalismo para tentar criticar a sociedade ocidental em seu cerne, buscando suas raízes mais profundas e queimá-las., não deixando nada em seu lugar. Entre eles, Foucault, Derrida, Deleuze, Guattari, cada um usando artilharia pesada no tema que escolheu.Se a sociedade era apenas um sistema de dominação, onde não existia valor algum com significado intrínseco, mas cada pedaço dela era ao mesmo tempo testemunho e instrumento dessa condição, era preciso investir sobre a própria língua, pois ela poderia nos enganar mesmo nos discursos revolucionários mais inflamados.
Mas se a língua é construída por essa dominação, tudo nela deveria estar dentro dessa lógica. E digo mais: seria impossível que dominados e dominantes usassem a mesma língua, sob pena de confundir seus papéis sociais. Isso é tão óbvio que chego a rir da inocência de Barthes, sempre tão vaidoso em seus ternos caros, echarpes e cachecóis, esperando o aplauso da platéia ao fim de cada frase... Porque imagino um líder fascista usando a mesma língua que um perseguido pelo regime. Não lhe resta alternativa se quiser ser compreendido. Agora, ele está sendo sujeitado nesse momento? Se estiver, a quem? A única resposta possível seria ao passado, aos que "fizeram a língua", mas isso é apenas a adiar a resposta, que seria igualmente jogada para outro momento se a fizermos sobre o passado. Afinal, quem pensou a língua e conseguiu se colocar de fora dela para não sofrer seus efeitos e conseguir dominar aqueles que não se enquadravam em sua visão de mundo?
Vamos um pouco mais adiante. A língua é uma construção histórica, todos concordamos. Mas para autores como Barthes, expressa apenas a dominação, como se a história humana fosse, veja só, a história da luta de classes. Na origem das palavras jamais aparece a luta humana pela sobrevivência diante da natureza inclemente, nem mesmo as tentativas fracassadas de melhoras sociais, nem a violência de grupos invasores, da luta pela preservação de sua família e cultura contra os destruidores (tais como Barthes), nada. A única leitura possível sobre a história é a da dominação.
Esse erro sobre a história é muito comum em autores de esquerda. Eles olham para a sociedade capitalista e julgam que toda a história humana poder ser entendida do fim para o começo, com a plena realização justamente no período em que ele vive. Às vezes ocorre aos mais humildes que a plenitude humana virá com a sociedade comunista e ele é apenas um tijolo dessa estrada dourada - o que não o impede de julgar a si mesmo inocente de qualquer imoralidade ou atrocidade que cometa, afinal, tudo acontece em nome da revolução.
Sobre seu projeto revolucionário podemos dizer que há quem o aplique com relativo sucesso. Vemos isso na linguagem neutra, nas afirmações sobre certas palavras e expressões que dizem ser racistas, etc. Mas note um detalhe importante: essas substituições tem pouco efeito real. Trocar um termo por outro é dizer da relevância daquele conceito na rede de valores da sociedade, não negá-lo, como eles pretendem. Por exemplo, ao trocar os termos "ele/ ela" por "elu/ elx", ou coisa que o valha, ainda assim se mantém o valor que a sexualidade serve como uma valise de comportamentos e preferências que resumem aspectos das pessoas e devem ser complementados socialmente por outros comportamentos. Enfim, não se nega aquilo que o pronome "ele" exigiria das pessoas, ainda é uma série de comportamentos que os interlocutores aprendem a ler pela simples pronúncia de um pronome. A estrutura do pensamento está mantida, não se foi tão revolucionário quanto se pensava.
Seria possível dizer, depois desse ponto, que Barthes tem razão, que o poder sempre incorpora a mudança e faz o mesmo com os pronomes neutros. Mas aqui, como em tudo o mais, o revolucionário nem sabe direito com o que está lidando, a contestação ao poder sequer começou. E não começou porque a língua seja fascista, mas porque ela não poder ser poder, como dissemos acima. No entanto, em sua trajetória, não se pode negar que Barthes sabia muito bem o que era o poder e como exercê-lo.
Para quem não conhece as reais inclinações do autor, o que para mim é indissociável de seu pensamento, talvez baste dizer qye em 1977, ao lado de outros "intelectuais", assinou um manifesto pedindo a descriminalização das relações sexuais com menores de idade. É por motivos concretos que se deve rejeitar esse tipo de canalha. Muitas vezes, ao nos propormos dialogar com pessoas que não passam de monstros, nós lhes conferimos uma humanidade que eles jamais tiveram. Devemos cuidar para não reabilitar à luz aquilo que sempre viveu entre as sombras.
É importante pensar sua obra a partir desse ponto. Que sujeito dedicaria sua vida a contestar valores quando isso não lhe interessasse diretamente? Isso é central e deve ser a principal crítica a seu pensamento e pessoa. Ninguém assinaria um manifesto desse tipo se tivesse ojeriza a essas práticas. Caso não seja suficente, Barthes se derreteu e escreveu palavras elogiosas, ou melhor, acariciou com sua linguagem rebuscada o ditador Mao Tse-Tung, simplesmente o maior genocida da história humana.