Gandolfi 24/04/2021
Os desejos internos que se abrigam dentro de cada um de nós como uma Casa de Pensão!
“Minha querida mãe.
Eis-me na grande Corte, que aliás me parece estúpida e acanhada por achar-me longe de vossemecê...”
Apoiando-se em um caso real que abalou a sociedade carioca entre 1876 e 1877 e sendo uma obra fruto da corrente literária do Naturalismo, Aluísio de Azevedo nos brinda com uma obra fantástica que demonstra a realidade nua e crua dos desejos humanos, suas cobiças e ambições e suas retratações fidedignas da realidade vigente com teses apoiadas nas questões patológicas humanas, as teorias deterministas, nas formas animalescas presentes no ser humano, e a objetividade e impessoalidade narrativa. Após sua estreia em “O Mulato”, de 1881, o que vemos em “Casa de Pensão” é um autor mais já apoiado no que quer transpassar aos seus leitores.
Partindo do interior maranhense para estudar na capital do Brasil Império, a cosmopolita Rio de Janeiro, que à época abrigava a Corte Portuguesa, o jovem Amâncio Vasconcelos acaba encontrando seu caminho até um pensionato administrado e ocupado por indivíduos gananciosos em busca de amor, de dinheiro, de status ou de aventuras. Seduzido por essas luxúrias, Amâncio acaba caindo em tais armadilhas.
Essa é a sinopse que o autor utiliza para traçar um retrato dos agrupamentos humanos que estavam se formando no período e as suas inevitáveis recaídas para a imoralidade e a decadência humana. Essa questão de caráter psicológica e psicanalista é mais um fruto da corrente naturalista, que, aliás, permeia toda a obra com relação às doenças morais (promiscuidades, hipocrisia, desonestidades, sensualismos excitados e excitantes, ódios, baixos interesses, dinheiro…) que se misturam também doenças físicas (o tuberculoso do quarto sete que morre na casa de pensão, a loucura e histerismo de Nini e a varíola que Amâncio contrai no meio da trama). Era até engraçado em como João Coqueiro e sua família se apresentavam como os bons defensores da moral e dos bons costumes, mas eram eles mesmos permeados por perversões morais.
A relação entre o protagonista Amâncio Vasconcelos e o antagonista João Coqueiro, é um outro ponto a se destacar, por seu ótimo trabalho em trazer à tona as grandes semelhanças entre esses dois personagens a partir da tese naturalista que defendia que o indivíduo era condicionado, influenciado, modificado e determinado por sua herança genética. Ambos cresceram tendo uma infância doutrinadora por seus pais que julgavam o modo como deviam agir e recebendo confortos nos braços de suas mães protetoras, caracterizando assim a influência que seus modos de criação e de educação tiveram em suas vidas, os tornando muito acanhados.
Entretanto, a diferença entre eles reside então na outra vertente defendida pelo Naturalismo, do meio em que o indivíduo vive e como isso o modifica. Amâncio havia passado toda sua vida no interior maranhense enquanto João Coqueiro estava mais perto dos centros urbanos. Como resultado, Coqueiro era uma pessoa que sabia das artimanhas, das trapaças e das espertezas passadas nas grandes cidades e se apoderou delas a seu favor, ao manter Amâncio sob suas asas pela sua riqueza e também por rapidamente notar o verdadeiro interesse de Lúcia nele. Por sua vez, Amâncio cresceu nos meios provincianos do Maranhão, renegado de sua liberdade e a almejando e alimentando essa conquista através das obras romancistas e fantásticas que lia; tanto é que quando finalmente conseguiu isso ao ir para o Rio de Janeiro, ele deixou esse sentimento dominá-lo totalmente e não percebeu as muitas artimanhas que foram planejadas em torno dele.
!!SPOILERS!!
Outro fator que notamos em relação aos dois personagens foi um possível Complexo de Édipo. Isso porque o carinho zelado pela respectiva mãe de Amâncio e João Coqueiro em oposição ao caráter agressivo de seus pais, pode ter lhes levado a se envolverem mais tarde em suas vidas com mulheres muito mais velhas do que eles, no caso de Madame Brizard para João Coqueiro e Maria Hortênsia para Amâncio.
“Casa de Pensão” também pode ser uma obra a fazer refletir em quem, no seu âmbito de amizades e familiares, realmente se importa com quem você é, e não com o que você oferece. Amâncio passou a história inteira sendo explorado pelo seu dinheiro, seja por João Coqueiro, seja por Madame Brizard, Amélia, Lúcia, Paiva Rocha e Salustiano Simões. Ele também era usado por Maria Hortênsia como uma forma de escape de seu casamento frio e monótono com Campos, esse, que mesmo que tenha ficado ao lado dele a história inteira, o condenou da pior forma possível assim que soube do caso dele com sua esposa. Todos aqueles que defenderam Amâncio em seu julgamento, também logo defenderam seu assassino pouco tempo depois por uma simples questão de visibilidade. No final das contas, a única pessoa que de fato se importava com Amâncio, com quem ele era, era sua própria mãe, que acabou vendo o filho morrer sem ter nem a chance de se despedir.
!! FIM DOS SPOILERS !!
Por fim, a mensagem que o autor inseriu no início dos folhetins pouco antes dos capítulos passarem a serem publicados, resume completamente o escopo da obra e o porquê de se qualificar como um dos melhores exemplares da corrente naturalista no Brasil:
"Não o qualifico de romance, porque tal não é o caráter que lhe tenciono imprimir. Não tenho igualmente a pretensão de fazer dele um livro científico, nem tão pouco realizar uma obra de arte. Apenas me proponho estudar uma das faces mais antipáticas de nossa sociedade – a vida em casa de pensão. Meu único fim é rasgar aos olhos do leitor a parede de uma dessas velhas casas de pensionistas, e expor na sua nudez fria e profundamente comovedora os dramas secretos que aí dentro se consumam, terríveis e obscuros, como a luta dos monstros no fundo do oceano. Desejo exibir toda a hediondez dessa existência que corrompe nossa sociedade, como uma moléstia secreta e inconfessável corrompe o organismo humano”.
(Folha Nova, 5 mar. 1883)