Caioliveiriano 28/06/2009
Leite Resenhado
Autor de poucas, porém impactantes, obras literárias, Francisco Buarque de Holanda não é um Gabriel Garcia Marquez ou um Machado de Assis. Seu mais novo livro, Leite Derramado, tem sido vendido como uma saga familiar marcada pela decadência (similar aos Cem Anos de Solidão), ou então como uma espécie de Dom Casmurro moderno, uma vez que seu narrador e personagem principal padece da mesma dúvida que assolou Bentinho no famoso clássico literário. Embora realmente existam similaridades em relação a ambos, a obra de Buarque trata principalmente da relação de um homem com suas memórias.
Descendente de linhagem rica e nobre, o protagonista Eulálio Assumpção jaz em uma cama, velho e alquebrado, enquanto narra sua história de vida de maneira não-linear e por vezes repetitiva, confundindo amiúde faces, nomes e eventos. Sua relação imediata com as pessoas e objetos ao redor é apenas um meio cujo fim é trazer à tona a próxima reminiscência.
Nem mesmo sua filha ainda viva, Maria Eulália, existe fora de sua construção da realidade; embora presente, ela é mero lembrete do que seu pai perdeu ou vivenciou. Eulálio, quando abandonado por sua mulher, Matilde (perda que o assombra constantemente), passa a buscar na filha traços que a identifiquem com a mãe, ficando desolado ao perceber que a menina cresce cada vez menos parecida com ela. Mesmo antes de tornar-se ancião, Eulálio já vive de memórias de outros tempos, característica que o acompanha pelo resto da vida cada vez mais difícil que leva.
Suas posses mínguam; o estilo de vida luxuoso da juventude gradualmente dá lugar à pauperização. Todos os terrenos e casas – templos que encerram diferentes significados para ele – são vendidos a fim de saldar dívidas, até não ter nenhum lugar para chamar de seu. Enfim, quando precisa morar de favor em um cômodo contíguo a uma igreja, fica satisfeito porque estará no mesmo terreno da fazenda de que outrora teve que se desfazer. Mais que a precariedade da situação, o que lhe importa é conectar-se aos seus antepassados, à sua história de vida e à sua identidade.
Buarque emoldura cada um desses eventos cruciais para Eulálio com fatos da história do Brasil. Tudo está inserido em um contexto, em um bom exercício de intertextualidade, mas sem perder de vista que o que interessa é sempre a perspectiva de seu protagonista acerca das coisas. Não há julgamentos valorativos sobre, por exemplo, a ditadura militar. Esta é mero pano de fundo para certos infortúnios pelos quais os Assumpção têm que passar em sua trajetória.
A prosa do autor é simples e concisa sem qualquer prejuízo ao seu talento de evocar sensações e gerar reflexões. Buarque não precisou escrever um épico familiar ou o conto máximo sobre ciúme machadiano para manter-se válido. A narrativa que construiu sustenta-se sem comparações (embora inevitáveis, claro) e merece ser chamada de Literatura, com “L” maiúsculo.
Francisco Buarque de Holanda não é um Gabriel Garcia Marquez ou um Machado de Assis. E isso não é algo necessariamente ruim.