Marc 26/03/2013
A Ordem e o Caos
Costuma-se dizer que Asilo Arkham trata de um Batman diferente, mais frágil, porque seus horrores aparecem explicitamente. Mas desafio quem quiser a encontrar uma história dele em que a morte de seus pais não apareça. O caso aqui é que nos deparamos com uma maneira bastante inusitada de tratar esse drama. Aliado a um visual completamente diferente, ainda hoje, de tudo que havia sido produzido em quadrinhos.
Detesto definições, rótulos, pois servem apenas para enquadrar o mundo, dando um sentido à força, o sentido que desejamos impor; e toda a imensa força do imprevisto, da criação passa a ser negado a partir desse momento. Basta ver, por exemplo, a pressa com que geralmente definimos o tipo de música de uma banda que não conhecemos e estamos sendo apresentados, ou as influências na obra de alguém, etc. E o grande mérito dessa HQ, que podemos contraditoriamente portanto, classificar como adulta é exatamente conseguir fugir a essa rotulação. Porque até hoje as interpretações são as mais variadas, chegando, inclusive a leituras completamente opostas. E essa negação do rótulo, ou melhor, essa característica antiaderente, que impede o rótulo de se fixar, é o que a faz adulta, não uma cópia da realidade, mas algo que atua nela, modificando-a.
Carregada de simbolismo, numa clara alusão a Jung e seus arquétipos. Raramente vejo alguém dizer que poderia muito bem ser o sonho de Bruce Wayne, com suas viradas bruscas, inconsistência, repleta de uma lógica que não é a usual, mas que parece totalmente racional (uma grande característica do sonho é criar uma lógica só sua, que parece perfeitamente aceitável enquanto sonhamos e absurda quando acordados), sem começo, e com um fim abrupto. Dessa forma, tudo está dentro de sua cabeça e ele luta para escapar de um pesadelo.
Embora seja atraente, essa interpretação esconde uma armadilha cruel e muito usada quando se quer abrandar o impacto de uma obra: se nada aconteceu, não precisamos nem nos preocupar. É uma maneira de dizer coisas interessantes e meio que pedir desculpa depois, dizendo olha, não é bem assim, isso é sonho ou loucura.
Prefiro acreditar, ao contrário, que diante da força do caos que o Coringa representa, Batman escolhe o caminho da ordem. O caos em sentido real, que pode tanto ser destruidor, quanto criador e que sempre é imprevisível. E o grande embate, que deixa de ser particular de Bruce Wayne e passa a ser assunto de todos nós, é entre essas duas forças: o caos imprevisível de um lado e a ordem, sempre conservadora do outro. Daí a importância do Duas-Caras, porque no momento que ele ganha o tarô (e vale lembrar que este, além de tudo, é um objeto místico), o caos ganha força. Batman percebe isso e luta para trazê-lo à velha dualidade: bem contra o mal (e isso pode ser percebido no fim, nos pequenos textos sobre os personagens, onde Dionísio é simplesmente a expressão do Mal, e Apolo do Bem); pois é assim que a ordem conservadora concebe o mundo. Se permanecesse com o tarô, Duas-Caras perceberia que atrás da indecisão a que fora submetido, num primeiro momento, se esconde o pensamento, pois este é capaz de refletir sobre a validade da questão colocada a princípio. Mas Batman volta e lhe entrega a moeda, na luta pelo conceito da realidade, mostra que o mais confortável é nos mantermos dentro da prisão do pensamento estabelecido. Ou seja, para Grant Morrison, o pensamento leva sempre a um questionamento existencial, que pode ser expresso metalinguisticamente.
Embora isso pareça um pouco fora do âmbito de uma HQ, os leitores de Homem-Animal certamente vão reconhecer o procedimento do autor. Mas no caso de Asilo Arkham ele está muito mais refinado, menos óbvio. E é essa inserção da metalinguagem que faz com que nos percamos na interpretação dessa história, porque não aparece o momento em que não é mais o Batman, mas nós que fazemos o procedimento ordenador. A loucura, no caso de Amadeus Arkham, faz entrar no simbólico, em um mundo apenas suspeitado, mas nunca concreto o bastante para ter certeza. Assim, se fia mais e mais na magia, uma maneira de influenciar o desconhecido. E a loucura sempre andou de braços dados com o misticismo, como se trouxesse uma verdade impronunciável e que precisa ser trabalhada de outra forma.
Mas para o Coringa a loucura funciona em outro sentido. Ela faz com que simplesmente questione o fundamento da realidade mesma. Não um local de verdades tão sutis que não podem ser ditas por nenhuma lógica que conheçamos, mas a dúvida se essas verdades e esse local existem.
Essa é minha história preferida do Batman...