Pedro Bastos 02/12/2011O Rio de Lima Barreto e dos francófilos“Afonso anda pelas ruas do Rio de Janeiro no início do século XX, fiscalizando a reforma urbana que aos poucos transforma a capital do Brasil numa Paris Tropical. Guardião da cidade, despede-se das casas demolidas, ou apenas perambula pela rua do Ouvidor, excedendo-se na boemia dos cafés”.
Bastou ler o trecho inicial do resumo na contracapa de um livro aparentemente simpático intitulado “O passeador” (192 páginas, editora Rocco) para que minhas atenções se voltassem todas a ele. Geralmente tendo a gostar muito de livros que tenham a ver com a história da cidade do Rio de Janeiro, incluindo ficções cujo cenário seja o ambiente urbano daqui, na época em que for. Logo, "Rio de Janeiro" acaba sendo um assunto que me interessa e, na maioria das vezes, determinante na hora de escolher um livro, fosse com “Black music”, do Arthur Dapieve, ou “Girândola de amores”, do Aluísio Azevedo.
Na orelha, mais informações importantes, cheias de palavras-chave decisivas para o ato da compra: “Um jovem escritor flana pelo Rio de Janeiro dos primeiros anos do século XX – até aí tudo igual – perplexo diante da paisagem em ruínas. Percorre as ruas empoeiradas do Centro, vigia as obras de abertura da avenida Central, desequilibra-se entre construções. Critica a reforma urbana que pouco a pouco transforma a capital do Brasil numa cópia de Paris”. Pronto, já me conquistou! Por pouco já não o levo ao caixa sem antes notar o melhor dos detalhes: “Esse passeador é Afonso, que um dia se tornará o conhecido Lima Barreto”.
Lima Barreto é um dos meus autores favoritos desde a época do vestibular, já há alguns anos, quando li pela primeira vez “O triste fim de Policarpo Quaresma”. Quem conhece sabe que é uma obra prima da nossa literatura. Poderia abusar de todos os outros clichês para elogiar o talento desse escritor, que tem senso de humor afiadíssimo no que tange ao comportamento da alta sociedade carioca e nas ironias mais particulares em relação a ela. Tudo isso sob a perspectiva de uma vida que lhe foi de muitos altos-e-baixos – ênfase no “baixos”. Ler mais sobre sua vida, mesmo que por uma ótica mais ficcional do que real, seria prazeroso, pensei. Não hesitei; por R$ 26, que me parece ser o preço-padrão, levei “O passeador”, da jornalista, escritora e doutora em Literatura Comparada (UERJ) Luciana Hidalgo, na Livraria da Travessa da Sete de Setembro.
A expectativa antes do início da leitura era a de encontrar muitas descrições sobre ruas, praças, parques e todo o rebuliço provocado pelas obras da belle époque na cidade. No entanto, o ritmo da história era outro, bem mais voltado para o romance, no estilo das obras literárias clássicas. A pegada “carioca” e “urbanística” é salpicada aos poucos, e de forma muito mais contextual do que exclusivamente descritiva. Pelo diálogo dos personagens, costumes de uma época marcada pela influência francesa e sistema escravocrata é que se visualiza como era o ambiente urbano carioca e por que foi parcialmente desfigurado por Pereira Passos. Em variados momentos comenta-se sobre o mal estar em andar por ruas empoeiradas, que enfeiava o vestido das madames, ou então a respeito do desenvolvimento da iluminação pública – como era, como está e como ficará com os "novos" avanços técnicos no futuro.
Vale ressaltar que os costumes parisienses citados e incluídos na história são um dos pontos fortes do livro de Luciana Hidalgo. É-nos mostrada uma sociedade onde a elite tem como segunda língua o francês, sendo este um dos fatores decisivos para julgar o quão elegante e/ou intelectual fosse um carioca – logo, o seu grau de dignidade. Afonso, o personagem principal, apesar de mulato e humilde, tem grande proficiência no idioma, com o qual abocanha diversas obras clássicas da época naquele idioma.
Os exageros com a cultura francesa – até mesmo uma obsessão quase engraçada – pode ser conferida no personagem Pierre Olivier, amante de insetos, que na verdade é brasileiro e chama-se (ou deveria chamar-se) Pedro Oliveira, o verdadeiro sobrenome de sua família. Pelas ruas, não importa se faz aquele sol escaldante; as mulheres copiam e vestem os mesmos modelos que as francesas, ainda que a temperatura por lá seja bem mais baixa do que nos trópicos. Em outro momento, o jantar na casa de Sofia, a mocinha, foi encomendado diretamente da Confeitaria Colombo: oeufs aux truffes, tranche de garoupa sauce mayonnaise, asperges sauce mousseline e jambon à York. De sobremesa, fraises à la gelée e glace Havanaise. Cardápio pomposo.
“O passeador” restringe-se a contar a vida de Afonso, nosso Lima Barreto, ainda na fase sã, sem muitos episódios de bebedeira ou insanidade, que causaram-lhe a morte anos mais tarde. Todavia, muito além de Lima Barreto, o livro envolve o leitor com todos os personagens e a relação deles para com o modelo de cidade em que viviam. Esse ponto, pelo menos, foi o que mais me agradou. Fiquei com aquela sensação de querer saber mais, de imaginar como teriam sido as suas vidas, em como as transformações políticas, sociais e culturais posteriores, no Rio, lhes afetaram ou qual terá sido a maneira como reagiram a elas. Além de tudo, passei a refletir muito sobre como deve ter sido esse processo de inserção do negro na sociedade em sua realidade objetiva - algo de que sabemos apenas pelo olhar de uma elite tal como aquela que vivenciou a Era Pereira Passos, tão pobre de espírito.
Gostei muito dessa história, não só pelo jeito fácil e envolvente de escrever da autora, como também pelo seu caráter bastante instrutivo, cheio de referências intelectuais e históricas.
Luciana Hidalgo esteve autografando os exemplares de “O passeador” na Livraria da Travessa de Ipanema no final de outubro desse ano. Pena que eu não tenha sabido antes. Faria questão de uma firma sua, porque esse livro já está, definitivamente, na categoria dos “meus favoritos”. Sem mencionar que tem muito a ver com o As Ruas do Rio. Recomendo, é a última coisa que eu digo.
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http://vejario.abril.com.br/blog/as-ruas-do-rio/estudos-sociais/o-passeador-o-rio-de-lima-barreto-e-dos-francofilos