Esch ou a anarquia | 1903

Esch ou a anarquia | 1903 Hermann Broch




Resenhas - Pasenow ou O Romantismo


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Paulo 06/10/2023

Estranho, denso e magnífico
Estranho falar sobre esse livro. Depois de lê-lo fiquei com a impressão que nada mais resta a ser dito.

?Broch deu conta da convulsão de sua época de modo tão abrangente que mesmo hoje, em momentos de crise, e sobretudo de crise de valores, é citado como um profeta. Um profeta que, no entanto, não afirma, apenas nega.?

Magnífico
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Marc 07/05/2022

Hermann Broch termina sua trilogia de um modo terrível e desesperançado. A impressão que temos hoje, ao estudar o período entre guerras, é que a Europa mergulhou em um profundo desalento, que as pessoas não viam meios de que a situação pudesse melhorar e que nova fatalidade era inevitável. Por isso, quando dizem que certos autores foram proféticos, eu só acredito em pontos muito específicos, porque parece que o clima geral era realmente ruim e qualquer pessoa poderia fazer previsões sobre um futuro próximo bastante difícil — talvez até com uma nova guerra (como aconteceu, realmente). Meu comentário, portanto, é menos sobre esse aspecto profético do texto e sim sobre a tese central da trilogia, através do exemplo de Nietzsche, que foi um pensador — visto a partir da tese da destruição dos valores — pouco original e alguém que se antecipou em “poucos segundos” às mudanças que estavam por vir. Essa escolha se justifica porque ele condensou todos os temas que seriam comuns a nosso tempo, através da fórmula de tresvaloração de todos os valores, ou seja, deitar por terra toda a tradição de pensamento e valores em nome de uma novidade regida exclusivamente pelo desejo, pela vontade de potência, pelo desejo de domínio sobre o mundo.

É impossível fazer um comentário a respeito desse livro sem passar pelas digressões filosóficas, pois elas tem muita profundidade. Broch está falando da dissolução dos valores morais e procura mostrar como o Ocidente vem sendo bombardeado por sistemas filosóficos anticristãos e antimoralistas, disfarçados de inovações do pensamento (esses trechos explicam que essas mudanças são muito mais profundas e anteriores ao século XIX e que seus personagens, exemplos do que essas mudanças criaram, tinham poucos meios de reconhecer o atoleiro em que estavam enfiados). Quando se está vivendo um momento difícil, como o de Broch, é fácil pensar em desastres e ser pessimista, mas não é fácil compreender como a situação chegou a tal ponto, fazer uma análise histórica e filosófica que dê conta de esclarecer o momento; essa é a diferença do próprio autor para seus personagens, pois eles não conseguem se separar desse sentimento dominante, do espírito da época e se tornam suas vítimas indefesas, mesmo acreditando dominar seu destino, como é o caso de Huguenau. Dentre os capítulos de análise filosófica, destaco o 44, onde Broch mostra que na Idade Média havia um valor absoluto que dominava toda a vida, toda a atividade humana e que isso foi contestado pelo Renascimento e pela própria Reforma Protestante, gerando um tipo de racionalidade que só foi encontrar predominância no século XX. É um longo processo de erosão dos valores, que já haviam sido solapados, mas que se mantinham de pé, porque mesmo que filosoficamente Deus não fosse mais o princípio da vida, as pessoas continuavam se movendo sob esses valores. Mas, aos poucos, a sociedade como um todo vai investindo em novos modos de pensar, cada campo desenvolve-se autonomamente, segundo sua lógica e valores. É por essa razão que, como o autor diz, temos os imperativos como “a arte pela arte”, “guerra é guerra”, “negócios são negócios”, etc, porque cada atividade humana paulatinamente foi liberta desse valor universal. Mesmo que, no fim, todas ainda obedeçam a uma lógica universal, que é a do radicalismo do progresso e da inovação, do resultado, da performance, etc, cada uma dessas atividades realiza essa lógica com seus meios muito particulares.

Sendo assim, a humanidade deixou de observar princípios universais, se concentrando exclusivamente na obtenção de resultados e acúmulo de riquezas. A ética e a moral simplesmente não tem sentido, são verdadeiros entraves ao resultado. Fica muito fácil compreender as razões — o que não significa concordar — pelas quais pessoas se dedicam a suas atividades sem se preocupar com as consequências de suas ações sobre as outras. O que vale é o resultado para si mesmo, como sua ação gera riqueza e resultados de progresso, nada mais. Huguenau é o estereótipo dessa objetividade que toma tudo, inclusive as pessoas, como meios de obtenção de resultados. Diante dele, mesmo Pasenow, ainda tão preso ao mundo passado, e Esch, perdido diante da vida e incapaz de escolher princípios claros (a religião que ele pratica é mística e incerta, sem valores, sem práticas, se limitando a um discurso solto e quase hipócrita, portanto) são personagens sem força, porque ainda limitados por algum tipo de valor, mesmo que descompassado e frágil.

Esse volume final da trilogia Os Sonâmbulos de Hermann Broch é um livro um tanto quanto difícil de ler. O autor não se limitou a elaborar um romance clássico, como nos dois volumes anteriores. Aqui ele mistura gêneros, faz inúmeras digressões filosóficas e conta a história de várias personagens ao mesmo tempo. Dada a complexidade desse volume, é obrigatório rever os anteriores com aquilo que o autor definiu aqui e refazer a trajetória dos personagens. Quando terminamos a leitura de Huguenau, a trilogia ganha profundidade e abrangência e sabemos estar diante de um verdadeiro gigante do pensamento. Broch conseguiu, de fato, definir uma época em todas as suas nuances e movimentos, sendo capaz, inclusive, de tecer profecias extremamente pessimistas e preocupadas com o futuro da humanidade. São profecias negativas, por assim dizer, onde ele diz mais o que vai faltar aos tempos que virão do que propriamente como eles serão, mas a partir dos elementos de reflexão que ele nos entregou aqui, sabemos fazer a correlação e compreender onde o autor pretendia chegar, como ele imaginava o futuro.

É um erro comum reduzir sua complexidade a temas bastante conhecidos e torcer as palavras do autor, como relacionar a objetividade de Huguenau ao capitalismo. Embora essa objetividade esteja presente no sistema capitalista, ela não se resume a ele — críticas desse porte estão presentes em Max Weber, por exemplo. Pensar assim é um erro e despreza o esforço do autor para definir uma época e não uma atividade exclusivamente. Tanto isso é verdadeiro que Broch coloca esse mesmo tipo de racionalidade no revolucionário, pois a característica essencial é ignorar tudo o mais e buscar uma realização individual. Também o revolucionário, com seu discurso de solidariedade, deseja um mundo construído a sua imagem e semelhança, ou seja, de acordo com suas opiniões e desejos, desprezando o que possam sentir e pensar os outros.

Quando escrevi sobre o primeiro volume, disse que era o momento em que o passado e o futuro se chocavam, em que um mundo surgia, enquanto outro declinava. E isso fica muito claro no relacionamento de Huguenau com o major Pasenow. Um está ligado às obrigações do mundo do passado, da honra (mesmo que em sua juventude ele tenha desejado apenas a glória e poder, jamais as obrigações da função de militar) e tenta preservar o mundo com um mínimo de ordem; enquanto o outro representa o que está vindo, dominando tudo de modo irresistível, como se fosse uma onda invadindo a costa e levando tudo que esteja no caminho, pois a ausência de moral e honra são predominantes em Huguenau. Ele está imbuído de uma ética, se é que podemos usar o termo, que não leva em consideração nada que tinha valor no mundo antigo. E, como único critério que possui para avaliar uma ação, julga que basta ela ser ativa, quer dizer, ser a efetivação de algum desejo, para ser boa. Isso lembra bastante Nietzsche e sua descrição da moral do senhor.

Talvez nem seja necessário partir para esse tipo de consideração, pois Broch evita usar o nome do filósofo alemão, mas não podemos ignorar a enorme semelhança de Huguenau com aquilo que foi definido como um espírito livre. Ele decide o que lhe é caro, despreza a religião e as pessoas que a praticam, sente ojeriza pelos valores morais, que liga ao passado arcaico, e só enxerga a realização daquilo que planejou. Ora, alguém poderia dizer que Nietzsche jamais defendeu o egoísmo, mas o que ele certamente não fez foi defender qualquer tipo de solidariedade ou pensamento no bem social ou caridade, porque eles contrariavam frontalmente sua postura de criação dos próprios valores e significavam (de acordo com sua visão) o sujeito se dobrando aos valores externos. Podemos identificar no comportamento de Huguenau essa vontade inabalável de subjugar tudo e todos, fazer do mundo um campo de batalha gigantesco, onde todos terminam caídos diante de sua poderosa vontade. E, como não podia deixar de ser, depois que o desejo de destruição alcança seu ápice, resta apenas a si mesmo. O fim da aplicação do pensamento nietzschiano é uma triste autodestruição resignada, pois o desejo não pode encontrar barreiras e, quando derrubou todas elas, resta olhar para si como o último bastião do passado, jogando-se num abismo, tal como a esfinge, depois que tem seu enigma descoberto.

Huguenau foge da guerra, evita se colocar em risco, mas continua pensando a vida em termos bélicos. As pessoas tem apenas duas definições, pode-se deduzir, de suas ações: ou são entraves a seu avanço, devendo ser retiradas o mais rapidamente possível, ou são peças que podem ser livremente manipuladas e conduzidas para que realize seus planos. Não há pessoas com desejos, aspirações e sonhos em sua visão de mundo. Todos os lances são decisivos, todos precisam ser vencidos e se obter o resultado desejado. Isso é tão verdadeiro que ele se aborrece demais com Esch, mesmo depois de tê-lo enganado, se tornado dono do jornal sem gastar sequer um centavo; mas a proximidade entre Esch e Pasenow lhe desconcerta, porque ele havia bolado um plano em que eles se tornariam inimigos, os dois manipulados por suas jogadas irresistíveis. Mas acontece justamente o contrário, mesmo depois de seu “relatório” sobre as supostas atividades subversivas de Esch. Esse é o único momento em que Huguenau teme por seu futuro, porque seu plano parece descambar. O mundo lhe oferece resistência, negando sua vontade — e isso é inconcebível para um espírito livre.

O que pretendo dizer com esse comentário é bastante simples, afinal: o que Broch percebe é que o mundo, de fato, caminhava para aquilo que Nietzsche havia sonhado, que era a demolição de todos os valores e criação de outros, mas que esse mundo significava a destruição e nada mais. Isto é, sem meias palavras, o nazismo. Depois que o mundo se destruiu, depois que os valores foram massacrados no confronto Inglaterra x Alemanha na Primeira Guerra Mundial (ver A Sagração da Primavera de Modris Eksteins), o mundo estava pronto para a tresvaloração de todos os valores, como era a fórmula de Nietzsche e isso significava um mundo de poder sem freios, de violência e morte. Onde a moral e a lei foram suspensas, como foi o caso da Europa pós-Primeira Guerra, resta apenas a vontade do mais forte. E a filosofia nazista era exatamente isso, a exaltação da força, da violência e da morte, em última instância. Não é mero acaso Huguenau ser um assassino, pois assim, nesse ato absurdo e ao mesmo tempo simbólico, ele demonstra até onde pode chegar e como despreza a moralidade.

Vale a pena insistir nesse caminho, porque Nietzsche, mesmo a sua revelia, era um ideólogo e niilista. Ele não gostava do mundo, sentia asco ou o desprezava, mas sonhava em ser exaltado pelas pessoas que sequer sabiam de sua existência. Há enorme ressentimento em seu pensamento, o desejo de curvar o mundo a sua vontade. Assim, compartilhando o mesmo sentimento que soube identificar tão bem nos revolucionários, Nietzsche sentia ódio do mundo, pois este o desprezava e ele nada conseguia realizar de seus desejos. Surge, como é natural nesse tipo de pensador, um sistema que termina substituindo o mundo real, ou como disse Eric Voegelin, ele cria um sistema simbólico que destrói o mundo: “As ideologias destroem a linguagem, uma vez que, tendo perdido o contato com a realidade, o pensador ideológico passa a construir símbolos não mais para expressá-la, mas para expressar sua alienação em relação a ela.” (Reflexões autobiográficas, p. 39). Eis, novamente, o ponto mais importante a meu ver, o tema da linguagem e como ela vai se descolando da realidade.

Pessoas que não tem a capacidade de compreensão e expressão de seu próprio tempo são, evidentemente, muito comuns. Até mesmo os tipos que aparecem aqui, ora um sujeito que visa unicamente a manutenção de seu status, enquanto se entrega à devassidão, ou alguém de classes baixas que tenta enriquecer com as maiores imoralidades, embora acredite ter valores intocados em seu âmago, como se conseguisse mergulhar na lama e não se sujar, enfim, esses tipos são comuns a todas as épocas. Mas é a incapacidade de alguns poucos que são responsáveis pela transformação dos eventos de uma época em linguagem que possa ser reconhecida e compreendida pela maioria o que caracteriza o declínio de uma época. Onde estavam aqueles que pensavam, capazes de alertar a maioria sobre o abismo que estava cada vez mais próximo?

É esse descolamento entre a linguagem e a realidade o que caracteriza uma época de crise. Ou as pessoas não conseguem dizer o que vivem ou testemunham, ou até o fazem, mas com uma coleção de clichês que são vazios, sem sentido e completamente inexatos. É aquele que ao ter que lidar com a vida e suas necessidades, enxerga que todos os eventos acontecem devido à luta de classes, por exemplo, e que ele é um mero joguete das forças históricas, incapaz de realizar qualquer coisa decente em sua vida.

Esse descolamento, essa substituição por um sistema alienado, nos termos de Voegelin, aparece claramente na insistência tola de Pasenow na autoridade de seu uniforme, na busca por uma religiosidade sem prática de Esch e na resoluta negação do outro de Huguenau. Todos esses personagens sofrem do mesmo mal, da impossibilidade de lidar com o mundo, pois não o compreendem, não tem nem mesmo meios de lidar com ele e, no caso de Huguenau, que parece conseguir ao menos alcançar fortuna, esse descolamento da realidade atinge proporções assustadoras, fazendo dele um personagem canalha e egoísta, totalmente indiferente aos outros, tratando a cada um que conhece como uma peça a mais de sua “vitória”. Não espanta que mesmo os outros personagens que completam o panorama do livro sejam, em graus diversos, também livres de moralidade, vivendo segundo seus desejos e ignorando o mal que são capazes de fazer. Mesmo os médicos, que teriam uma função honrada, são medíocres e mesquinhos.

O mal que Huguenau pratica é de uma natureza diferente da que era conhecida até então. Em mais uma antecipação do que o nazismo e o comunismo seriam capazes de fazer, Broch descreve o mal desse personagem não como uma convicção, uma escolha, mas como um resíduo das ações egoístas e irrefletidas que ele vai cometendo ao longo do livro. O tipo dominante de nossa época não é mau por escolha ou por uma natureza vil, mas por completa incapacidade de pensar naquilo que faz. Quase como um animal, guiado apenas por apetites e desejos tolos, Huguenau (nós) vai pulando de maldade em maldade, de malfeito em malfeito e não pensa jamais naquilo que fez. Mas até mesmo o mal, aquele de verdade, escolhido como modo de vida, precisa de uma decisão e de reflexão. Não é o caso aqui. As maldades vão apenas acontecendo, porque esse tipo é limitado demais até mesmo para cometer grandes males. Quero dizer, Huguenau não tem personalidade e não sabe escolher entre o bem ou o mal. Nós todos somos assim, desprovidos de valores que possam nos alertar sobre os limites de nossos desejos; burros o bastante para não pensar sobre o bem que poderíamos fazer aos outros; indiferentes a tudo que não seja a realização imediata de nossos desejos. Nós temos malícia e somos capazes de engenhosos planos, mas só quando se trata de realizar nossos desejos, nada mais além disso. No restante do tempo, somos inteiramente medíocres e vazios de personalidade.

Talvez, portanto, ao conceito de banalidade do mal, seja preciso acrescentar que o mal só se tornou banal porque não temos consistência alguma dentro de nós para compreender e refletir sobre o que quer que seja. Nós, filhos desse mundo imoral, como Nietzsche tanto desejava, só sabemos buscar a imposição de nossas vontades sobre os outros, um mundo de monarcas egoístas, mal-humorados e ridículos, sonhando com a grandeza enquanto se afundam num infantilismo digno de crianças mimadas. A consequência, portanto, da destruição dos valores é a criação de seres humanos sem personalidade e mesquinhos a ponto de cometer pequenas maldades quase o tempo todo, sonhando que isso seja a realização de seus grandiosos desejos.
Thaíssa Pereira 07/05/2022minha estante
Olá estou começando um IG literário,ficaria muito feliz e grata se pudesse seguir @livros.por.thai
Obrigada! Boas leituras


Marc 10/05/2022minha estante
Ok, já segui.




Marc 01/04/2021

A trilogia de Hermann Broch trata das mudanças ocorridas no fim do século XIX e começo do XX. No primeiro volume, essas mudanças estavam quase no início, embora já impactassem a vida das classes mais abastadas (comumente descritas como avessas às mudanças por boa parte da sociologia). Curiosamente, aquela herança de honra do mundo aristocrático era descartada em nome de promessas de novos prazeres e poucas obrigações, isso numa classe que tinha esses valores como seu sustentáculo. O segundo volume trata da classe baixa, com as perenes dificuldades de sobrevivência e a esperança de dias melhores. Como essas mudanças radicais poderiam ter afetado as classes mais frágeis?

O que é mal compreendido é que as mudanças não são boas ou ruins por si. Parece óbvio dizer isso, mas é o que elas provocam que pode ser fatal. Quem defende o progresso alucinado, sempre em direção ao futuro, não sabe que certas mudanças são catastróficas. Por outro lado, dizer que todas as mudanças são ruins é sem sentido. A dinâmica da vida é de mudança, isso não há como negar. Mas o que elas trazem em relação ao comportamento humano é o mais importante. Mudanças que sejam amparadas na trajetória humana, que incorporem o que há de bom, testado por milênios de “evolução”, essas devem ser as que buscamos. Aquelas meramente destrutivas, que colocam “novidades” descartadas há tanto tempo, só porque os que as propõem não estudam história, essas costumam ser deletérias e gerar morte e sofrimento.

Disso resulta que períodos em que, como disse no comentário à primeira parte da trilogia, a moralidade foi destruída, costumam ser os mais dramáticos para a humanidade. Esse verdadeiro fetiche pelo recomeço (veja só como essa palavra é atual e como Broch nos permite pensar sobre isso) traz em seu bojo a vontade de jogar uma pá sobre os erros do passado. A palavra fetiche não aparece por acaso. Trata-se mesmo de fetiche, porque ninguém, com ao menos uma parte de contato com a realidade, acredita que isso seja realizável. Não há recomeços na sociedade e na história. Nesses momentos de progresso e deslumbramento da sociedade consigo mesma, que produzem hiatos na moralidade logo em seguida, há descolamento do passado, uma vontade terrível de negar as atrocidades de há pouco; mas não existem lenitivos, é preciso um pouco de humildade (muita na verdade) para reconhecer os erros e partir em outras direções, mas sempre com a lembrança de que eles podem voltar a acontecer. A verdade é que nosso passado, aceitemos ou não, está sempre dialogando com nossas decisões presentes. Nós podemos negar, sempre sonhando com recomeços, com uma utópica pureza que nos permitirá deixar o passado soterrado e esquecido; ou podemos trazer na consciência o peso dos erros, não como um entrave para o dia de hoje, mas como aprendizado.

Todos os caminhos, vontades, obrigações, dívidas — o que quer que seja —, que cercam Esch não tem, na realidade, muita força ou apelo sobre ele, não conseguem fazer com que ele abandone todas as outras possibilidades e se concentre em apenas uma delas. Por inúmeras vezes ele acreditava estar salvando Ilona de um destino trágico e humilhante, acredita estar lutando pela liberdade de Geyring, mesmo entregando alguma forma de amor a Frau Hentjen; no entanto, todos esses caminhos surgem como ímpetos momentâneos e que logo são substituídos por outros. Não que eles não tenham o poder de martelar em sua cabeça, eles tem, estão sempre presentes e por muitas vezes o atormentam “cobrando” soluções, mas parece que ele mesmo não os leva muito a sério. Mesmo as tais famosas marteladas, que seriam capazes de forjar um novo homem nessa aurora de século, pareciam fracas demais, ou talvez fosse a matéria sobre a qual agiam, incapaz de manter alguma forma por muito tempo. O fato é que a mobilidade — arriscaria dizer liquidez, mas o termo é carregado de um significado que acho que Broch não aprovaria, apesar de tudo —, a inconsistência de Esch salta aos olhos. A humanidade que se formava, ali, seria frágil e inconstante, dedicada a alimentar ilusões de grandes realizações, mas incapaz de manter projetos além daqueles que se realizam instantaneamente.

O que Esch parece ter como método de vida é a capacidade de pular de um objetivo para o outro rapidamente, livrando-se do ônus de ter que enfrentar sua concretização. Melhor dizendo, ele não consegue conceber que se permaneça em uma direção por muito tempo. A anarquia, nesse caso, é a completa falta de direção, uma fluidez que não consegue gerar frutos, atos práticos, concretude. De modo que não deve ser acaso o status que os pensamentos do personagem ganham. A cada momento, mesmo curto, ele pensa milhares de coisas, conjectura, se perde em raciocínios longuíssimos e perde o tempo da ação, ou toma decisões erradas. O compromisso, diferentemente de Pasenow, que não desejava assumir responsabilidades, até lhe aparece como importante, mas ele não consegue dedicar mais do que alguns minutos a ele de cada vez, pulando para outro assunto rapidamente. Esch está sempre excitado pelas circunstâncias e procura responder a todos os estímulos, mas, exatamente como nós, falha miseravelmente, porque todas as coisas tem o mesmo peso.

Esch não pode ser considerado uma pessoa má. Ele tenta agir corretamente, mas perdeu, de modo irremediável, a capacidade de tecer ordenamento no mundo. Tudo está embaralhado, democraticamente embaralhado, se poderia dizer, porque tudo tem o mesmo significado. Se é assim, um caso amoroso não pode ser considerado inferior a um relacionamento sério, com possibilidade de constituição de uma família. E vemos como o escopo do primeiro livro é ampliado, porque Pasenow desejava apenas se entregar a seus prazeres, sem obrigações; Esch até deseja enfrentá-las, mas está paralisado por não saber estabelecer prioridades e nem compreender, com profundidade, o significado moral de seu comportamento. É como se tudo se passasse na superfície, como se a vida fosse lidar com as coisas da maneira como se apresentam e nada mais; sem reflexões a longo prazo. Poderíamos dizer que a esse personagem, a nós, falta imaginação moral. E essa afirmação talvez possa criar alguma estranheza, já que ele se perde em imaginar quadros e mais quadros do que poderia acontecer, só que todas as vezes que faz isso, está tomado por expectativas, sem levar muito em consideração a subjetividade dos outros personagens, tampouco as circunstâncias reais do entorno. Em uma palavra, Esch sonha em ser moral, em restituir o certo no mundo, mas como fazer isso se não há objetividade , ou seja, se tudo está tão misturado e nivelado que mesmo os atos mais tolos e banais podem lhe soar como grandes realizações?

Por essa razão, quando tentamos trazer as reflexões do livro para nossos dias, há um desconforto muito grande. Num primeiro momento, através da figura de Pasenow, vemos que a responsabilidade nos afugenta, que a vida para nós é um acúmulo de experiências prazerosas e qualquer coisa relacionada a servir ao mundo é tida como uma espécie de castigo ou desperdício de tempo. Mas com Esch, um personagem que tenta viver de acordo com a moral, podemos começar a nos desesperar, porque se perdemos o princípio de ordenação e hierarquia de valores, é óbvio que podemos dedicar anos a qualquer tolice e descartar as coisas verdadeiramente importantes rapidamente. Isso sem mencionar a inconstância que permeia qualquer tema em nossa vida. O prazer, importante lembrar, sempre como a verdadeira régua para se medir a vida. Nesse segundo volume da trilogia, Broch torna sua descrição do mundo mais claustrofóbica, me parece, porque o desejo pela liberdade se torna uma nova prisão. É simples: a procura incessante por estímulos e liberdade faz com que Esch não consiga mais sentir o gosto da vida cotidiana (sempre o sonho da viagem aos EUA). Não seria mais inteligente construir sua vida onde vivia, não renunciar indefinidamente em nome de um paraíso terrestre, que lhe consome todas as forças e torna a vida pálida e sem gosto?

Qual é, portanto, a grande tragédia de Esch? Ele luta para encontrar algum sentido em sua vida, mas tudo está confuso demais para que ele seja capaz de encontrar a resposta. Porque para que essa pergunta — incontornável para todos os seres humanos — possa ser respondida, é inevitável que exista uma hierarquia de valores. Para que algo dê sentido a nossa vida, outras coisas precisam ser indiferentes e outras despertar ojeriza. Se tudo está no mesmo degrau, se tudo é possível, nada mais óbvio que iremos pular de um sentido a outro imaginando que, de alguma forma que não sabemos qual seja, a resposta virá. Por isso, mencionei de passagem que se referir a nossa época como líquida é superficial e certamente Broch não concordaria: porque esse ainda é o efeito apenas visível, sendo o lado mais “simpático” de uma questão muito importante. Ou seja, essa inconstância, essa velocidade com que abandonamos as pessoas e causas, isso tudo é apenas o sintoma do verdadeiro mal.

Falar em sentido da vida pode parecer até exagerado, mas não creio que Broch não pensasse nessa questão. Precisamos lembrar que é um começo de século depois de enormes mudanças na cultura ocidental. O século XIX assistiu a um colonialismo selvagem, que resultou em animosidade entre as principais nações europeias; assim como diversos pensadores decretaram o fim dos valores absolutos (a morte de Deus, para falar como Nietzsche) e, também, o crescimento do âmbito de influência do comunismo. Tudo isso concorria para abrir uma enorme fenda na cultura ocidental, solapando a base de seus valores, que ainda se mantém, embora transformada. Não muito tempo depois, a Europa entrava num conflito tão agressivo que moldou a visão de mundo de várias gerações. Só para dar um exemplo, foi a gravidade desse conflito que fez com que se ensaiasse a criação de um órgão supranacional de resolução de conflitos entre países e, relativo ao mundo das ideias, surgiu o importante texto “A conspiração aberta” de H. G. Wells, que estabeleceu as bases para um governo mundial, que está se concretizando aceleradamente em nossos dias.

Mas quando falamos de sentido da vida, não se trata apenas desse nível macroscópico, também cada um de nós sente essa questão na pele. O sentido da vida é um tema que todos temos que lidar, conscientemente ou não. E parece que Esch, fruto de todas as transformações culturais que estavam acontecendo, não consegue estabelecer as prioridades de sua vida. A rigor, por mais óbvio que seja dizer isso, Esch é apenas um exemplo, um estudo de caso para o que acontecia em grande quantidade e afetava milhões de pessoas. Não é a velocidade elevada a um valor comportamental, como aparece em alguns pensadores, que explica o momento, ao contrário, ela é consequência de uma profunda transformação cultural. Broch é sutil, mas essas transformações vão aparecendo ao longo do texto. Porque é difícil imaginar que uma sociedade amparada nos valores antigos fosse capaz de tolerar toda a miríade de personagens que Esch vai encontrando pelo caminho. E a transformação em relação ao primeiro livro, quando nos propomos a comparar o tipo de personagens em cada um, fica visível. No caso de Pasenow, o sujeito que desejava as glórias sem responsabilidade, mesmo a vida sem raízes de Bertrand, ainda há resquícios do passado, que desmorona irreversivelmente; já para Esch o passado não tem mais peso algum, ele é voltado ao futuro, a realizações, a sonhos. É o novo mundo querendo se impor, cheio de sonhos e com um quadro bastante diverso de valores. Mas, como não há essa ancoragem no passado, não deixa de ser apenas um recomeço fútil e tolo, fadado ao fracasso (que significa sempre um recomeço atrás do outro, negando os erros e o aprendizado que eles trariam). Exagerando essa tendência, poderíamos afirmar que a sociedade moderna é uma sociedade sem história, pois a cada tropeço ela está pronta para partir em nova direção, se livrando de seus pecados pelo esquecimento.

Esch sabe que os valores devem ser preservados, que a honra, a honestidade, a verdade, etc, devem ainda conduzir a conduta humana, mas não sabe como devem se manifestar num período de crise. Qual a maneira correta de auxiliar um inocente? Qual a maneira correta de entregar amor a uma mulher solitária e que teme as repercussões de ter um relacionamento tornado público pois é viúva? A rigor, Esch não está errado, mas ele perdeu esses parâmetros. E, ao perdê-los, como dito antes, tudo se equaliza e a confusão toma conta de seu espírito. Embora comedido, Hermann Broch é muito feliz em descrever o sofrimento espiritual de Esch. O conflito entre o que ele sabe ser verdadeiro e a impossibilidade de colocar em prática esses valores, de realizá-los concretamente. No fim, como era de se esperar, vencer o relativismo, porque nessas horas apenas os mais perseverantes saberão o que fazer e não serão dominados pelos novos ares.

Eis a maneira como todos nós, mesmo sabendo do valor e significado da verdade, cedemos e nos tornamos apenas mais um exemplo de tolos, entregues ao sabor dos ventos, sem firmeza alguma para tomar qualquer direção na vida. E isso inclui o sexo, que muitos afirmam ser o grande motor do comportamento de Esch. Mas não considero importante destacar esse aspecto, porque ele está incluído naquilo que é uma vida sem parâmetros, anárquica e onde todas as áreas tem o mesmo peso. Se é assim, parece óbvio que ele se entregaria a uma vida de prazeres sexuais, mesmo que eles pudessem contradizer alguns dos valores que tenta seguir, afinal, tudo está no mesmo nível de importância, sendo impossível dizer que Esch se guia por algum valor específico. Os valores vão ficando ocos e incapazes de influenciar a conduta das pessoas. Ao menos os valores antigos, que sobrevivem muito mal.

A moralidade fica confusa, os valores se mesclam e o novo bagunça aquilo que existia antes. Isso já havia aparecido em Pasenow, mas agora, com Esch, vemos que há um deslocamento feito quase sem perceber dos valores para a necessidade da ação. Não importa muito aquilo que se está fazendo — até porque nem mesmo Esch seria capaz de esclarecer seu comportamento, o que o motiva —, desde que não se esteja parado. A ênfase muda do valor orientando a ação, para o mero procedimento, ou seja, é fundamental fazer alguma coisa, o que seja e os motivos, isso realmente não importa. Não estamos falando de velocidade e movimentação, mas da ideia de que o mundo precisa sempre de nossa intervenção. Essa distinção é importante, pois dizer que a ação vai assumindo o papel de destaque pode fazer pensar na tese de Bauman sobre a modernidade líquida e a necessidade de movimento. Não se trata disso, embora Esch se desloque bastante durante o livro, viaje, caminhe pela cidade, ele não é um turista (o ideal da modernidade é o turista, pois viaja, não estabelece laços e precisa conhecer tudo, segundo Bauman), mas alguém que precisa dar uma resposta ao mundo, tentar modificá-lo constantemente, corrigi-lo. Se Pasenow pouco se importa com o mundo, Esch, ao contrário, tenta transformá-lo o tempo todo. Mas ele não sabe como, não sabe nem mesmo o motivo e não tem muita noção das modificações que deseja impor. Isso fica patente quando ele se mostra pouco empolgado com as reuniões do sindicato, mas logo entende que precisa fazer algo por Ilona e por Geyring. Agir, mesmo que não se tenha clareza das razões que o levam a isso.

Esch está o tempo excitado, não apenas no sentido sexual. Ele sente a necessidade de agir, sente que, se ficar parado, nada vai acontecer. Na sua visão, mesmo que cada pessoa tenha sua vida, bastaria ele parar (nem que fosse para pensar), o mundo todo ficaria parado. É essa tendência moderna de supor que o mundo precisa estar em movimento, de que “águas paradas se tornam lodo” e que quanto mais rapidamente as soluções vierem, melhor, será um problema à menos. Não espanta que a ansiedade seja um dos grandes males de nosso tempo, porque estava em gestação há cerca de um século... Usei a palavra excitação, mas o mais correto seria dizer que Esch é suscetível, porque tudo que lhe passa pelos olhos provoca algum pensamento, algum tipo de reação; ele é compelido a reagir, mesmo que dure muito pouco e não tenha consequência alguma. Essa característica o coloca na grande confusão de sua vida, que mescla uma moralidade elevada, de cunho religioso até, e o impulso sexual, que o faz desejar muitas mulheres ao mesmo tempo. Enfim, Esch é uma completa anarquia de impulsos, caos, lhe jogando para todos os lados.

Assim, para concluir, gostaria de comentar rapidamente sobre os dois significados da palavra anarquia. Eu brinquei com eles durante o texto e é preciso esclarecer um ponto. A princípio, o termo faz pensar em caos. Mas há o sentido político, onde uma sociedade idealizada não possui autoridade, não possui Estado e hierarquia. Esch vive o caos, um verdadeiro furacão de desejos e deveres, contradições que o levam a querer soluções imediatas para todos os problemas. Mas esse caos só se torna efetivo por não existir hierarquia de valores dentro dele. Se tudo foi nivelado, como já disse antes, nada é prioritário e pode ser abandonado tão logo gere desconforto ou problemas. E ele não tem meios de estabelecer prioridades, pois tudo tem exatamente o mesmo peso. Mas a anarquia que se estabelece vai muito além da que Esch enfrenta internamente. É a cultura que vive esse momento, onde o novo e o antigo estão em conflito e o mundo que vai nascer ainda não esboçou suas feições. Não é de estranhar que logo à frente, no terceiro volume, haja guerra, pois é a consequência lógica e esperada de tudo que estava acontecendo até então. O que precisamos reter, por enquanto, é que Esch é uma força que entende ordem como igualdade, ou seja, de um modo bem diferente do que usei aqui. Para ele, o mundo só está ordenado quando todos gozam das mesmas oportunidades e tem as mesmas condições de vida. Essa sutileza aparece em sua revolta (tardia), contra todas as figuras que estão acima dele, seja de fato, como seus chefes ou proprietários de empresas (ou mesmo a polícia, que ele se refere como corrupta e defensora da desigualdade) ou imaginariamente, como seu “amigo” Lohberg, moralmente superior e que ele despreza — inveja, seria mais correto dizer —, mas de quem se apropria de algumas expressões e ideias para a formulação de sua visão de mundo e plano de ação.

Tudo isso, essa retórica religiosa e socialista, concorrendo dentro dele com impulsos lascivos, faz com que Esch contribua — inconscientemente — com a ruína do mundo e a desagregação dos valores. Talvez esse seja o traço mais importante em toda a trilogia e que só aparece mais claramente a partir desse volume. Sem perceber, tentando acertar, mas sempre errando porque a personalidade não tem parâmetros para avaliar a realidade e estabelecer o rumo correto de ação, Esch vai se embrenhando cada vez mais nessa destruição. É difícil ter clareza quando não há pontos fixos, seria quase um milagre que ele soubesse como se comportar.
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Marc 10/01/2021

Certos autores tem um impacto gigantesco em nossas vidas e não conseguimos nos livrar de suas reflexões com tanta facilidade. Posso dizer que Walter Benjamin teve esse sentido em minha vida, o que me causa um certo espanto e frequentemente me recordo de algumas de suas observações, embora, com o tempo, tenha discordado de muitas delas. Mas Benjamin foi um analista interessante porque era “contaminado” por uma teologia herdada do judaísmo, o que o fazia pensar na história como tendo um sentido sempre dramático e decisivo a cada nova mudança e configuração.

Uma das reflexões de Benjamin que mais me marcaram foi uma passagem do ensaio “o narrador”, onde ele define que a sociedade passava por mudanças tão drásticas no começo do século XX que todos estavam tontos, um pouco entorpecidos e completamente ignorantes de seu sentido e alcance. Esse entorpecimento não deixou as pessoas frearem a tragédia que se aproximava, que era a Grande Guerra, mesmo com a escalada de conflitos entre as grandes potências, com o investimento de somas cada vez maiores em armas e equipamentos de guerra, além de aumento do efetivo de tropas. Em termos da sociedade, a destruição do antigo mundo novecentista era acelerada. Ninguém compreendia muito bem o que estava sendo gestado, mas todos pressentiam que os antigos valores não seriam mais suficientes diante da nova realidade. Um dos poucos que pressentiu isso foi Dostoiévski, que conseguiu dizer, com bastante exatidão, que a “morte de Deus” seria uma tragédia para humanidade. Outros, no entanto, tiveram sucesso em descrever essa situação, sendo filhos dessa mudança.

Quando ouvimos falar da trilogia Os Sonâmbulos o quadro de deterioração dos valores é frequentemente lembrado. Mas, sinal dos tempos em que vivemos, eles mesmos de uma profunda destruição, pouco se percebe que falta um substantivo para ajudar a definir essa expressão com mais exatidão. Deterioração dos valores morais, seria mais exato dizer. Quando uma sociedade começa a abandonar a moralidade que a sustentava, é inevitável que enfrente crise, conflitos, mortes e guerras. O que tinha valor está sendo abandonado e algo posto em seu lugar, novos líderes surgem, novas nações, novos modos de organização político-econômica. É quase inevitável que aqueles que declinam se choquem com os que estão ascendendo, que se cruzem em algum lugar do caminho e se estranhem.

O primeiro volume dessa trilogia mostra o tenente Joachim Von Pasenow nesse momento, em que os movimentos de passado e futuro confluem no presente, destruindo e erguendo um novo mundo ao mesmo tempo. Mas fiz a ressalva da deterioração dos valores morais porque, embora o mundo a seu redor esteja mudando, é nesse âmbito que tudo fica ainda mais nebuloso. Por isso, não concordo muito com quem apenas diz que Pasenow pretende manter o antigo, simbolizado por seu uniforme, enquanto está perdido com as novidades. O uniforme não funciona como um farol durante a tempestade, mas como uma imagem que transmite autoridade, um resquício oco, apenas uma aparência do passado. Enquanto veste sua farda respeitável, Pasenow, na verdade, mergulha no lixo, se deixa levar pela busca de prazeres com uma prostituta, mesmo tendo uma mulher prometida em sua cidade natal.

Ele não quer o mundo respeitável, não quer usar a farda como um instrumento para construir o futuro. Ele quer apenas gozar prazeres inimagináveis ao lado de sua amante e nada mais. Enquanto o mundo tem seus olhos voltado para o gozo, deixando a construção do futuro de lado, tudo ao redor desaba por falta de zelo. Esse é Pasenow, que não tem a menor intenção de assumir responsabilidade alguma na fazenda, tampouco as responsabilidades do cargo que almeja — ele quer o poder e o status da promoção, mas não quer trabalhar mais, o que seria uma consequência da promoção. Enquanto seu pai adoece, ele sonha apenas voltar aos braços da amante e viver o prazer. Discordo, portanto, daqueles que dizem que o personagem é indeciso diante das incertezas da vida. Ele sabe muito bem o que quer, mas pressente que todas as escolhas tem algum ônus e isso o afasta. Seria melhor, parece, que alguém assumisse as responsabilidades e o deixasse apenas com o título e a amante, nada mais. Ao lado da noiva, Elizabeth, ele sabe que terá prestígio e dinheiro, porque o pai dela é rico, mas sabe também que terá afazeres e terá que construir uma família.

Considero essa leitura bastante oportuna, porque as modificações aceleradas em nossos dias (me refiro a tudo que a eleição americana provocou no mundo em pouco mais de um dia) nos fazem desejar a tranquilidade de um mundo sem responsabilidades e de prazer. Mas não há responsabilidade maior do que a de construir o futuro, esse é um fardo que foi entregue a cada um de nós, embora muitos se ressintam e o abandonem, preferindo se entregar ao prazer desmedido, que pode também ser chamado de vício. O futuro, portanto, não é necessariamente melhor, não basta que o novo se erga para que o adoremos, não. Ele só terá algum sentido se for consequência daquilo que fizemos no presente, que é ancorado no passado.

Essa foi a verdadeira tragédia daquele período — e pode ser a nossa. Pasenow não foi capaz de compreender esse encadeamento, preferindo aproveitar o declínio do velho para abandonar as esperanças e responsabilidades do futuro. Quando se renuncia ao passado e ao futuro, resta apenas o presente, solto, sem qualquer ligação, sem provocar qualquer consequência. É como se uma época inteira tivesse regredido a uma adolescência perene, verdadeiramente entorpecida pelos prazeres e não desejasse mais nada.


moraes_psi 07/02/2021minha estante
Fiquei impressionado com sua resenha. A lucides e percepção.
Você escreve blogs ou trabalhos de crítica? Deveria! Eu iria acompanhar.

Viva a liberdade!


Marc 07/02/2021minha estante
Olá, Fernando. Agradeço a leitura e o comentário. Já andei escrevendo em alguns sites, mas praticamente só escrevo aqui, mesmo.
Pretendo fazer o comentário dos outros volumes, também, porque Broch tinha uma visão muito bem delineada sobre o período e ela pode nos ser útil hoje em dia.




Mario Miranda 21/01/2019

Um fechamento esplendoroso da Trilogia "Os Sonâmbulos". Pontos que possivelmente tenham ficados obscuros nos dois primeiros livros, têm suas conclusões finalmente em Huguenau. O que não significa que a leitura seja fácil: ao contrário, em diversos pontos é morosa e complexa. Os capítulos dedicados as digressões filosóficas do Broch são complexos - exigindo conhecimentos filosóficos prévios.

A narrativa é construída como parcelas da história de diversos personagens - o que em muito me recordou Sursis, de Sartre - , dos quais Huguenau, Pasenow e Esch são três dos mais recorrentes. Pasenow, então jovem Tenente no 1º livro, agora é o Major comandante da Região. Mantém-se fiel - e anacrônico - em sua visão de mundo, enquanto Esch deixa de ser um mero personagem sem sentido algum de existência para alguém arraigado em projetos religiosos. Talvez não seria forçoso identificar em Huguenau um símbolo do Capitalismo, Esch de um "anarco-socialismo", enquanto Pasenow seria uma antecipação do futuro fascista da Alemanha.

Huguenau é o símbolo do "novo" capitalismo emergente na Europa ao longo da 1ª Guerra Mundial: sem escrúpulos, sem sentimentos, sórdido, busca de qualquer maneira obter o sucesso econômico. Desertor da 1ª Guerra, refugia-se na região Alsaciana, onde estabelece-se como proprietário de um jornal local. O painel de fundo da história é a miséria da Guerra, já próximo ao seu fim (com todo o requinte de amputados e mortos de fome), aliado a destruição moral Européia que Broch tanto sentia.

Huguenau nos traz toda a capacidade de Broch em antever o triste futuro Europeu que culminaria na próxima guerra, seja nas passagens em que personagens afirmam que aquela guerra só se encerrará para dar espaço para uma próxima, seja quando a voz de um personagens conclama a necessidade de um Fuhrer (!) para salvar o futuro Alemão: sombrio... e fantástico!, tendo sido publicado em 1932, um ano antes de Hitler ser indicado a Chanceler.

site: https://www.instagram.com/marioacmiranda/?hl=pt-br
Sílvia 23/01/2019minha estante
Só falta esse para eu terminar a trilogia. Adorei os dois primeiros. Tenho certeza que o fechamento com Huguenau será tão bom quanto os outros dois.


Mario Miranda 18/02/2019minha estante
Huguenau foi uma leitura bem complexa, especialmente as digressões filosóficas de Broch. Talvez por isto, tenha achado as duas primeiras leituras mais fluídas. Mas sem dúvida Broch era dotado de uma aguçada - e aterradora - visão de mundo!




Sílvia 04/10/2018

Anarquia ou sem saber se vai ou se fica ou o porquê
Sensacional a segunda parte da trilogia Os sonâmbulos. August Esch não sabe o porquê de fazer várias coisas. Não consegue se entender nem entrar em consenso sobre seus sentimentos. Parece estar perdido dentro de um mundo em ebulição.
Ele tenta proteger uma pessoa que nem se lembra que ele existe. Culpa-se por uma prisão porque o encarcerado fez um favor a ele. Insiste com uma mulher que não quer saber dele. Fica com raiva de um empresário e dá uma de detetive para descobrir algum podre do cara.
Esses dois personagens, Pasenow, do primeiro volume da trilogia, e Esch, estão entre os mais humanos e mais bem construídos que eu já tive o prazer de ler.
Ansiosa para descobrir Huguenau do ter sido volume.
Bem disse Thomas Mann quando afirmou que os livros de Broch haveriam de ficar como testemunho de sua época.
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Mario Miranda 06/03/2018

Um relato sobre o vazio existencial
Para os que iniciaram o percurso da trilogia de Hermann Broch, e ficaram um pouco em dúvida quando a veracidade das palavras de Thomas Mann, atestando ser esta Trilogia um dos maiores relatos do início do Século XX, recomendo a persistência Literária.

Enquanto temos um Pasenow, Personagem Principal do 1º Livro, é um resquício de um Romantismo tardio, Esch há é um personagem sujo, envolvido em situações obtusas, vazio, completamente desprovido de valores. Fixa-se em determinados pontos de sua vida, não por serem estes relevantes, mas por nada mais ter para ocupar-se.

Sem dúvida abre as portas para um término grandioso no 3º livro, Huguenau ou A Subjetividade.

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Mario Miranda 26/01/2018

Pasenow ou O Estrangeiro
Um personagem anacrônico que assiste a evolução da sua época sem ser capaz de compreendê-la. Sobrevive com seu arcaísmo observando a decadência de valores, princípios e pensamentos, incapaz de adaptar-se ou compreender a sua própria existencia.
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Pasenow é um Estrangeiro Camusiano, que assiste, impassível, a sua vida ficar cada vez menos adaptável ao mundo em que se encontra inserido.
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Bernardo 04/08/2009

É um ótimo livro, só que apresenta diversos erros de revisão nesta edição.
Amâncio Siqueira 27/07/2020minha estante
É uma obra que merece uma boa edição. Bem que a Nova Fronteira poderia colocar na Biblioteca Áurea.




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