Bruno Oliveira 26/06/2015O encontro do engenho com a cidadeFaz pouco mais de um ano que iniciei um projeto pessoal com a literatura brasileira, e decidi ler sucessivamente autores do modernismo nacional em direção aos períodos mais antigos. O plano seria conhecer três livros de três escritores dessa corrente literária e depois passar à próxima, aliás, algo que estou prestes a fazer.
Entre os vários autores que li durante esse percurso, José Lins do Rego foi decerto uma de minhas melhores descobertas, sendo simples dizer por quê: é por ser delicioso o que ele escreve e o modo como escreve. Resumindo suas virtudes do melhor modo que posso, José Lins apresenta ao seu leitor um Brasil que não mais existe e faz isso por meio de uma literatura que não somos mais capazes de praticar, trazendo um olhar único sobre o Brasil que faz com que, mesmo uma obra como O moleque Ricardo que não está entre seus maiores acertos como artista, contenha qualidades que não estão em poder de nenhum escritor hodierno repetir.
Como José escrevia…
Ao contrário do que uma leitura apressada poderia sugerir, a narrativa de José Lins não é lenta; ela tem origem em outro tempo que nós, tão acostumamos ao frenesi da vida contemporânea, facilmente entendemos como lentidão. Como um menino do campo que veio à cidade como um estrangeiro, José traz à literatura uma paciência infensa ao nosso olhar afobado, sendo os nexos de O moleque Ricardo construídos com aquele vagar que só alguém desacostumado ao frenesi urbano poderia carregar.
Não obstante a isso, a narrativa não perde sentido ou se torna desinteressante, jamais ficando banal ou mortificando o interesse do leitor no que diz respeito ao cotidiano simples dos personagens. Ela repete o movimento da vida: a vivência de acontecimentos semelhantes de formas diferenciadas a cada dia, assim, acompanhamos as pequenas mudanças de um trajeto repetido e mesmo assim mantemos nosso interesse já que o mesmo e o novo são apresentados de maneira reiterada e concomitante. Conforme a história avança, mal notamos quando, de repente, ir a lugar algum se torna uma ótima ideia.
Sobre quem José falava…
O moleque Ricardo narra a história de um jovem negro que, ao fugir de trem do engenho, encontra na cidade uma nova realidade. A alforria era um evento recente e a presença do “negro trabalhador” ainda estava mal resolvida naquela sociedade, sendo que vários exemplos dessa irresolução aparecem na obra através de personagens que ainda não sabem se um negro pode ser um bom trabalhador, ou se só responde na base do chicote mesmo.
Apesar dessa realidade ser particularmente horrenda ao negro, ela parece ser horrenda de maneira generalizada à qualquer pobre recifense daquela época, a despeito de sua cor. Há uma camada da população recifense – homogenizada pela desgraça – a quem a exploração e a miséria são parte constituinte de suas vidas, de modo que o trabalho, embora eleve o pobre moralmente diante de outros pobres (afinal, faz dele um “trabalhador”), não serve para fazer com que suas condições materiais melhorem significativamente. A exemplo disso, o próprio Ricardo trabalha, trabalha e trabalha, mas é só com muita lentidão que acumula alguma coisa para si, e não muita. Para um negrinho vindo do nada, ter um dinheirinho que mandar à mãe de vez em quando pode até parecer grande coisa, e de fato é, mas isso é também o melhor que a vida terá a lhe oferecer. E aos seus filhos. E netos.
A pobreza que José contava…
Embora o universo bucólico dos engenhos não seja retratado senão alusivamente nesta obra, ele constitui uma referência importante para o protagonista por fazer parte de sua origem, e por ser o único mundo que ele pode usar como contraponto ao que descobre na cidade.
Na pacatez do engenho vigorava um ciclo de repetições em que as vidas transcorriam zoologicamente: bois gerando bois, ricos gerando ricos, pobres gerando pobres, e assim por diante, ao passo que na cidade Ricardo conhece gente demais, vê coisas demais acontecendo e o chocando repetidamente até que não reste mais choque algum, só a repetição. No fim das contas, a cidade também tem seu ciclo.
O mais curioso a respeito desse contraponto é que a descoberta da pobreza por parte de Ricardo não ocorreu no engenho mas na cidade. Enquanto no engenho todos criam galinhas, todos tem uma horta e vizinhos que são primos ou colegas com quem podem contar nos momentos de aperto, na cidade apenas o dinheiro dá acesso a tudo (saúde, comida, prazer) e, como consequência disso, é preciso adquirir um bocado dele para viver bem, algo impossível. A cidade desencoraja as relações de troca, afeto e amizade, e fortalece as relações impessoais de compra e venda – “aglomerada solidão”. É nela que Ricardo descobre aqueles que estão sós, famintos, e não podem recorrer à ninguém, colhendo no mangue ou no lixo seu alimento. Os montantes de dejetos que Recife produz são uma espécie de banquete debaixo do céu oferecido aos pobres, que podem ciscá-los junto aos urubus.
A política que José via…
Pensando bem, para além do dinheiro há sim uma moeda de troca na cidade: o voto; contudo, quem dá um voto de confiança a um político recebe o quê de volta? Recife, suas greves e seus rebeldes são, por diversos momentos, os verdadeiros protagonistas (e antagonistas) de O moleque Ricardo ao enunciarem promessas sedutoras que roubarão, senão a vida, ao menos a dignidade daqueles que viverem com base nelas.
Mas sem promessas, sem luta, resta o quê ao pobre recifense? Pular no carnaval e colher caranguejos no mangue como se fossem frutas.
Por sinal, o fim do livro é uma queda do autor em direção ao pessimismo. José Lins cometeu ali uma maldade voluntária que, malgrado não tenha ficado ruim, não é desenvolvida a partir do enredo com aquela maestria que faz com que o aceitemos como o único final possível.
Bem, por que ele escolheu o pessimismo? Foi uma pergunta que me fiz. Teria sido por influência de seu amigo encardido, aquele tal Graciliano? Ou foi por que o pessimismo, como diz o senso comum, seria “a realidade”?
Arrisco aqui meu palpite: o pessimismo final é uma espécie de escolhe política de José Lins. Ela faz de Ricardo um símbolo, um exemplo de uma realidade social, desanuviando o indivíduo e deixando em seu lugar um Ricardo que é somente mais um moleque entre outros tantos.
O escritor que José era…
O moleque Ricardo não está entre as melhores obras de José Lins, como já afirmei; entretanto, ela não deixa de ser ótima, tamanha a habilidade de seu autor.
Trata-se de um livro com um teor político incomum na produção do autor, que mostra algumas das opiniões desfavoráveis que ele tinha a respeito do sindicalismo e, sobretudo, da política governamental da primeira metade do século dezenove.
Ele é escrito com aquele estilo paciente e gostoso que, por seu talento e por sua origem campestre, só José Lins é capaz de transmitir, sendo uma amostra de uma literatura madura e virtuosa que nos apresenta o choque – historicamente datado – do campo com a cidade na perspectiva de um negro pernambucano, expondo artisticamente um fenômeno que, no mais das vezes, só conhecemos através de registros históricos impessoais. Essa soma produz uma literatura que é inimitável por ser fruto de circunstâncias muito singulares e do grande talento do autor, mas que, ao mesmo tempo, não é o que de melhor produziu o período e esse escritor.
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