Carlos Nunes 09/02/2023
Mais atual do que parece à primeira vista
O rei Lear anuncia sua intenção de dividir seu reino entre suas três filhas, Regan, Goneril e Cordelia, e pede a cada uma que declare o quanto o amam. As duas mais velhas o lisonjeiam, mas Cordelia se recusa, provocando a ira do pai, seu exílio e a divisão do reino entre as outras duas. Mas a incapacidade de Lear de entender que na verdade é Cordelia quem o ama mais, é o trágico erro que motiva o desenrolar da peça. Paralelamente a isso, temos uma trama paralela e similar: Edmund, jovem filho ilegítimo do nobre Gloucester, ressentido pela sua posição, trama um golpe colocando o irmão contra o pai, que propiciará a ele tornar-se o legítimo herdeiro das propriedades e do título do pai.
O único desejo do rei é desfrutar de uma velhice confortável e despreocupada, com as filhas cuidando dele, mas, em vez disso, Regan e Goneril tratam Lear de acordo com seu novo status de velho impotente. O rei é privado não apenas dos cuidados e do amor que esperava das filhas, mas também de seus cavaleiros, serviçais e até mesmo do abrigo de um lar. E é então que, tragicamente, ele consegue ver sua própria situação e perceber suas deficiências, embora tarde demais, quando ele já está impotente para fazer qualquer coisa a respeito. E muito desse conhecimento é mostrado a ele por uma das figuras mais interessantes e frequentes nas obras de Shakespeare, o Bobo.
É uma peça complicada, cheia de reviravoltas e tramoias, que vão se sucedendo até culminaram em um dos finais mais trágicos entre as peças do autor. É uma peça que fala de cegueira, de poder, de ambição, de amor filial, numa trama poderosa e envolvente que até hoje, por incrível que pareça, ainda acontece. Afinal de contas, quem de nós não conhece uma história de algum pai ou mãe que se viu privado(a) de tudo, até mesmo sem lugar para morar, depois de toda uma vida dedicada aos filhos?