Luísa Coquemala 29/06/2016
www.velhocriticismo.com
Diante te tanto burburinho político, discursos de ódio e confrontos políticos dos últimos tempos, me peguei pensando em Doutor Fausto, de Thomas Mann. Inevitável falar do livro. Vamos, pois, a ele.
BREVE RESUMO
De cara, já encontramos as linhas gerais do livro: Serenus Zeitblom, filologista, conta a biografia de seu amado e saudoso amigo, o compositor Adrian Leverkühn. Logo também sabemos da morte de Adrian (a 25 de agosto de 1940) e de seu destino trágico, cujo título já é grande indicativo do pacto demoníaco. Não é um livro de grandes mistérios ou de acontecimentos muito surpreendentes. Sabemos do talento de Adrian e do pacto diabólico. Thomas Mann começa sem muitas voltas. Eis o livro.
O narrador criado por Mann é interessante, ama o objeto de sua narrativa e, acima de tudo, não tem pressa. Como alguém que sofre ao lembrar de seu passado, Zeitblom se apega aos detalhes, às conversas e às imagens que envolvem a vida de Leverkühn. Sua tristeza é pura, podemos senti-la. Além das reminiscências, há uma enxurrada de assuntos envolvendo a narrativa: música clássica e teoria musical, religião, história, estética, referências à própria narrativa e por aí vai. Se você procura um livro para ler rapidamente, não leia este livro. Aviso de cara que este relato merece ser lido com muita calma, palavra por palavra. Do contrário, o melhor ficará de fora.
O narrador conta a infância de Adrian, fala sobre a inteligência e humor obscuro deste, sobre os primeiros estudos teológicos e a resolução, finalmente, de se dedicar à música. A erudição envolve a vida de Adrian e, às vezes, é fácil se perder no meio de tanto conhecimento – daí a generosidade necessária com cada linha do livro. Tentar acompanhar tanto conhecimento é tentar entender o próprio mundo das personagens.
Adrian demora a encontrar a sexualidade. Esta aparecerá na figura de Esmerada, prostituta que o deixará envolvido. Depois de ir a seu encontro, Adrian contrai sífilis, rendendo-lhe posteriormente uma febre cerebral. A partir daí, através das cartas do compositor e das incessantes observações de seus amigos, a realidade torna-se obscura, o livro se enche de incertezas.
No capítulo XXV é onde fica o tão esperado pacto com o Demônio. A escrita da carta de Adrian, contando o ocorrido, é muito intrigante. O espírito de Mefistófeles é capturado de maneira brilhante: ele é irônico, sagaz e, claro, é ele quem dita as cláusulas da compra da alma de Adrian. Lendo sua conversa com o compositor, podemos sentir o mesmo ar do Fausto de Goethe, a inserção de Mann na tradição fáustica.
Adrian, ciente de sua doença e febre cerebral, tenta argumentar, mas Mefistófeles mostra ser esperto. A recompensa oferecida são 24 anos de criatividade, a arte bárbara após o refinamento burguês. O preço é a proibição do amor na vida de Adrian. Mas, por maios recluso que seja, Leverkühn nem sempre escapa às garras do amor – e ele acredita que algumas mortes no livro têm relação com um sentimento de amor que surge nele.
O livro muda de tom depois do pacto. Tudo se torna ainda mais sombrio.
Há, ainda, a exposição das obras feitas por Adrian (em comentários complexos para quem não sabe muito sobre música), sua tentativa de noivado, a passagem do sobrinho Nepomuk em sua vida e, por fim, a reunião para apresentar sua grande obra, Lamentação de Doutor Fausto, cuja conclusão não é feita. Além disso, o agravamento de seu estado de saúde e sua morte. O amigo Zeitblom se mantém fiel, indo visitar o músico até seus últimos dias.
Temos, na segunda metade do livro, seu ponto alto – como em uma ópera que começa calma e continua em um crescendo.
MUITO ALÉM DO ÓBVIO
Fausto faz pacto com Mefistófeles.
O livro de Mann, contudo, não fica apenas nisso. Há, sobretudo, dois componentes que acrescentam planos interessantes ao livro.
Além da história biográfica sobre o compositor, o relato de Serenus Zeitblom contém uma crítica muito interessante à burguesia da época. Em personagens como Inês Rodde, a crítica é certeira. Inês, a fim de sair da casa de sua mãe e de uma vida que não a atrai, se casa com Institoris, mesmo sendo apaixonada por Schwerdtfeger, amigo frequentador de sua casa. Algum tempo depois, leva uma vida infeliz e rasa, sempre tentando mascarar seus desgostos através das aparências. Depois do término de seu caso, vemos uma Inês que já não consegue mais suportar o fingimento no qual vive, viciada em morfina e desnorteada.
Outra crítica muito interessante se dá em relação ao que foi feito pela sociedade burguesa quanto à ascensão do nazismo. Em dado momento da história, alguns personagens tecem comentários sobre as possibilidades de futuro para a Alemanha e, apesar de suas expectativas, não se mostram assustados ou alarmados para fazerem algo a respeito da intolerância crescente. O narrador, testemunhando todas aquelas opiniões e falta de atitude, fica embasbacado, principalmente tendo em vista a perspectiva sob a qual escreve.
E qual seria essa perspectiva? Eis outro plano muito interessante da narrativa. Serenus Zeitblom começa seu relato a 27 de maio de 1943 e só o finaliza anos depois. Entrementes, o narrador de nossa história vive um tempo sombrio para a Alemanha e para os alemães: a Segunda Guerra Mundial e a derrota alemã. Nesse sentido, a história não se resume apenas ao pacto demoníaco feito por Adrian, mas há também uma indicação de que a própria Alemanha, de certa maneira, também entrou em um pacto desse. Tempos sombrios, temos de ódio e intolerância.
E, de fato, o andamento da guerra e do relato da vida de Adrian andam juntos – e, por vezes, são escritos de forma muito tocante. Adrian morre no início da guerra, e o relato de sua biografia terminará juntamente no momento em que a guerra também finda. O narrador, portanto, tem a perspectiva de um alemão, dentro da Alemanha, que vivencia a guerra e a destruição de seu país (o que, sabemos, não é propriamente o caso de Mann, exilado nos Estados Unidos no momento). Existe uma relação muito interessante, um jogo com o elemento temporal, portanto, no andamento da vida de Adrian e na decadência alemã. A saúde de ambos vai piorando, as tragédias internas (de Adrian) e externas (do país) se misturam e o fim de ambos caminha junto:
“E no entanto…! Por menos que fosse possível estabelecer um contato psíquico entre o declínio de sua saúde [de Adrian] e a desgraça da pátria, não pude me impedir de descobrir em ambos um nexo objetivo, um paralelo simbólico. Essa minha inclinação talvez tivesse sua origem no mero fato da simultaneidade, mas nem sequer a distância que Adrian mantinha das coisas exteriores lograva superá-la. Escondi, porém, cuidadosamente esse pensamento e me abstive de mencioná-lo nem de longe em sua presença” (p. 397).
Em muitos momentos, pode-se imaginar em Zeitblom o próprio Thomas Mann e o que sabemos que sentia em relação às duas guerras pelas quais seu país passou: o inicial entusiasmo e depois a grande decepção com a Grande Guerra, o assombro e tristeza ao ver o rumo de seu país durante a destruição.
O LIVRO E NÓS
Sou fã de Thomas Mann. Desde que li A montanha mágica pela primeira vez, não parei mais. Despois de Os Buddenbrook, Morte em Veneza e Tonio Kroger, topei com a edição de Doutor Fausto na livraria. Não pensei duas vezes sobre comprar o livro ou não.
E acredito, de fato, que o livro de Mann não é importante apenas para aqueles cuja paixão pela literatura pedem um bom livro, mas também para todos nós, testemunhas de tempos turbulentos, de ódio e paixões exaltadas.
É importante pensarmos o que determinadas ideias podem fazer com toda uma nação. É necessário ter cuidado, avisa o autor, e é a partir daí que devemos começar a ponderar.
A Alemanha entrando em guerra, imersa em seu desespero, lembra um pacto demoníaco. Thomas Mann, então longe de sua pátria, sentado em sua mesa, escreve corajosamente um livro sincero sobre a guerra e sua aflição sobre ela. Para isso, sem rumo, como Dante, invoca as Musas e, assim, quem sabe, conseguirá encontrar esperança de fazer sua denúncia através da arte.
Doutor Fausto é um livro triste. Mas, não deixa de ser um relato de uma pessoa que, enfrentando um verdadeiro inferno, vê no fundo do poço a espera de um recomeço. Espelhemo-nos em Mann para não nos vermos em um pacto onde o amor ao próximo não é mais permitido.