Virgilio_Luna 15/01/2024
Veredas do Grande Sertão
?O grande-Sertão é a forte arma. Deus é um gatilho??
(Riobaldo à página 247 de Grande Sertão: Veredas).
Quando se escreve sobre um livro reconhecido e aclamado, arrisca-se a originalidade das ideias advindas da leitura. Poderia comentar sobre temas do destino, do demoníaco, do amor e do épico em Grande Sertão: Veredas. Isso implicaria, em meu caso, comentar sobre aspectos que pouco entendo e sobre os quais nada ou muitíssimo pouco estudei. Conforme meu intento, que é o de convidar o leitor a uma leitura ou releitura, prefiro abdicar dessas empreitadas.
Quero falar sobre coisas pessoalíssimas pertencentes à minha leitura, limitada e delimitada, desse romance que, por beirar o universal, atinge as particularidades de cada um. Redigir esse texto é expor minha pessoalidade de leitura, isto é, o livro que criei a partir do que li.
Para mim, Grande Sertão: Veredas é um monumento à ambiguidade diante de um mundo que valoriza cada vez mais a distinção evidente entre o verdadeiro e o falso, o real e o abstrato, o claro e o escuro, o bom e o mau e, sobretudo, entre deus e o diabo. É uma leitura catalisadora de perguntas, pois a narrativa de Riobaldo é tanto limitada por sua perspectiva quanto por seu desconhecimento das causas que o levaram a tomar determinadas escolhas. Para citá-lo, ?mente pouco quem a verdade toda diz? (p. 263) ? essa é uma das passagens do grande diálogo entre o jagunço-narrador e o doutor-interlocutor na qual Riobaldo denota sua dificuldade em constituir fatos.
Mas a ambiguidade de Grande Sertão vai a níveis mais profundos da narrativa, porque alcança perguntas sem resposta, como os Koan budista, concernentes à metafísica. ?Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre ? o senhor solte em minha frente uma ideia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos amém? (p. 18), diz Riobaldo, demonstrando ser uma personagem de personalidade reflexiva e que se atenta e sensibiliza diante dos grandes mistérios da vida.
Aquele mais pertinente à obra é: o Demo existe? Sendo essa pergunta a formuladora de toda a narrativa a ser contada, encontrando-se desde as primeiras à derradeira página da obra. Em outros termos, pode-se pergunta: o Destino existe? O que implica configurar um espaço para a vida e para a liberdade humana. Para Riobaldo, ao longo da obra, a metáfora privilegiada para se falar de gente e sina é fluvial ? a vida própria é um rio turvo, os destinos recruzados são travessias por rios, de uma banda a outra, passando pela ?terceira margem? e a busca de Riobaldo, perto do final da obra, é pelo rio Urucuia, de onde ele beberia fresca água.
Isso responde à pergunta anteriormente colocada? Sim e não ? o Diabo existe e não existe, o Destino existe e não existe, nós estamos mergulhados em nosso próprio rio, no qual a correnteza do Destino é mais forte que qualquer ação humana, ou nós atravessamos o Rio em uma bamba canoa, agindo conforme a coragem. Mesmo que, ao fim, aquilo existente nessas imagens seja o mero homem humano, esse é sobretudo travessia e, portanto, não sendo coisa findada e acabada, podendo mudar, variar entre Deus e o Diabo, entre o bem e o mal, entre o céu e o inferno. Por isso, não figura para mim, na leitura de Grande Sertão: Veredas, a pequenez humana diante do destino.
Isso é resultado de traços próprios de personalidade. Sou uma pessoa que acredita que o ser humano pode agir conforme sua vontade, mas só se o quiser. Daí, vejo nas ambiguidades de Riobaldo as minhas próprias ? e percebo como dividir as coisas em duas bandas e reduzir o todo à parte é um erro crasso. É como cortar uma laranja em duas bandas, chupar a doce, cuspir a azeda, e dizer que a fruta era de todo doce ou azeda. Aliás, meu estranhamento com Riobaldo ao final da obra foi incômodo, pois aquela personagem já não refletia valores por mim elegidos como bons ou maus. É Riobaldo de Deus ou do Diabo? É Riobaldo um pactário? ? É e não é, quer dizer, ele é dele mesmo.
Disso tudo, me vem uma última reflexão. A necessidade premente de se acabar com a guerra. Falo do genocídio na Palestina feito pelas mãos do Estado de Israel armadas com as máquinas-de-chacina dos Estados Unidos da América. Para mim, se aquele povo é o povo de Deus, e aquele reino que eles estão construindo é o Reino de Deus, então Deus e o Diabo são a mesma coisa. Esse é um dos perigos de querermos distinguir tanto o Bom do Mau e nos colocarmos em um grupo ou noutro ? é esse tipo de coisa que separa os seres humanos entre si e de si mesmos.
Você é de Deus ou do Diabo?
Tenho descoberto que somos todos uma travessia.