Filipe 04/03/2014
O imortal das chuteiras imortais
As crônicas de Nelson Rodrigues sempre foram recheadas de detalhes e impressionam pela riqueza de informações, ainda mais pelo fato do jornalista não enxergar muito bem. Sempre que ia ao Maracanã para acompanhar os jogos, era preciso de alguém ao seu lado para lhe dar maiores informações sobre os acontecimentos no gramado.
Apaixonado pelo futebol, tema central de grande parte de suas crônicas, Nelson era Fluminense fanático e torcia fervorosamente para o clube de futebol carioca. Além do Flu, a Seleção Brasileira de Futebol também era frequentemente escolhida como tema de seus textos.
Todo o material reunido em À Sombra Das Chuteiras Imortais são de duas fases diferentes de Nelson Rodrigues. As 31 primeiras crônicas foram retiradas de sua coluna para a extinta revista Manchete Esportiva, na qual trabalhou durante quatro anos. As 39 restantes foram escritas durante a sua passagem no jornal O Globo, onde tinha uma coluna diária chamada Às sombras das chuteiras imortais.
As crônicas presentes no livro são retratos de como o escritor e jornalista enxergava o futebol. Os relatos são de fatos cotidianos, principalmente a respeito dos times cariocas e das tardes de jogos no Maracanã. A Seleção Brasileira também foi um assunto bastante descrito no livro, seja pela festa após as vitorias ou pelos grandes jogadores que vestiram a camisa da nossa seleção.
Na crônica “Somos burros, burríssimos”, Nelson Rodrigues detalha bem o clima de Copa do Mundo no Rio de Janeiro, durante o torneio de 1966 e fala da habilidade de Pelé, pelo qual chama de crioulo e compara a outros grandes nomes do futebol mundial.
Nelson sempre, em todos os seus textos, escolhe apenas um nome, e o torna protagonista da crônica. Não necessariamente é um jogador que brilhou, mas sim aquele que chamou mais atenção. Isso não exclui os personagens extra-campo, como o árbitro, os auxiliares, os treinadores e até membros da torcida, que acompanhavam os jogos perto dele. Exatamente por isso, alguns personagens ficaram caricatos como a “Granfina de nariz de cadáver”, que aparece em diversos momentos. Ela se torna um estereótipo de uma mulher, de classe alta, que jamais se envolveu com o futebol, mas acaba acompanhando o esporte através do belo futebol apresentado pela Seleção Brasileira de Pelé, Garrincha e todos os craques da época.
Dentro de campo, geralmente, seus personagens principais eram os jogadores de destaque do fim de semana ou do jogo do dia anterior. Mostrava bem o porquê de o personagem ser o protagonista da crônica, ligando o fato a alguma história anterior. Um exemplo disso é a crônica ““Beau” Yustrich “Geste””, na qual ele compara um capitão do romance de nome “Beau Geste” ao técnico do Atlético Mineiro, que comandou uma virada histórica do time, que representava a Seleção Brasileira, em uma amistoso contra a Iugoslávia.
Os textos de Nelson Rodrigues são um misto de Literatura e Jornalismo. Ao mesmo tempo em que relatava os fatos ou jogos, ele utiliza uma linguagem bastante culta e carregada de adjetivos, dando um ar dramático e poético aos seus relatos. Quase nunca o jornalista se dirige ou dialoga com os leitores, seu texto é direto, conciso e sempre bem detalhado. Ele descreve o evento com muita opinião, e em grande parte delas, Nelson endeusa os craques que se destacavam nas partidas. Sua escolha era cirúrgica e o protagonista do dia era inflado por elogios e adjetivos dos mais diferentes estilos.
Suas crônicas eram narrativas, e em sua maioria, como já foi dito, elogiando determinado jogador ou time. Algumas vezes, fatos do cotidiano da sociedade da época também eram citados, mas sempre ligados ou direcionados ao futebol. Na crônica “Encouraçado de sol”, Nelson Rodrigues começa falando das praias brasileiras no inicio do século XX, a “falta de roupa” e do calor. Por fim, depois comenta sobre os jogos suspensos por causa das altas temperaturas.
Um detalhe importante e interessante - que até mesmo reforça o conhecimento de causa que Nelson Rodrigues detinha sobre o futebol - surge a partir do momento em que ele começa a escrever sobre a Copa do Mundo de 1970. Segundo o próprio autor, mesmo antes do evento ocorrer, o povo brasileiro não acreditava no título mundial. Muito pelo contrário. A grande e esmagadora parte os jornais, críticos e torcedores, pensavam que a viagem do Brasil ao México seria uma empreitada vexaminosa, e indo contra a essa quase unanimidade, Nelson pregava que a Seleção Canarinha era a melhor equipe de todo o planeta e iria trazer o caneco. Quando a competição começou, as previsões dele iriam se reforçando a cada exibição exemplar do grupo comandado por Pelé, Gérson, Rivellino e Jairzinho. Ele aproveitou essa oportunidade para massacrar toda a mídia brasileira que havia criticado o Brasil em outras oportunidades. Quando o tricampeonato aconteceu, ele inflou o seu próprio ego e despachou toda sua revolta contra aqueles que azaravam a Seleção Brasileira. A última crônica do livro, intitulada “Dragões de Espora e Penacho” é a conclusão de todo o enredo da Copa no México. Ficou comprovado ali que Nelson Rodrigues não era apenas mais um cronista da imprensa brasileira, mas sim um grande entendedor do futebol.
Não se sabe como Nelson Rodrigues reagiria se ainda estivesse vivo, assistindo, escrevendo e comentando o atual panorama que se encontra o futebol nacional. Os jogadores de hoje em dia já não possuem mais aquela identidade com o seu próprio time. Não existem mais Garrinchas e Pelés, tanto no quesito qualidade, como na questão de profissionalismo. Um jogador, hoje em dia, passar dez temporadas atuando pelo mesmo time, é quase uma utopia. Sem querer ser saudosista, mas esse era exatamente o charme daquela época. O futebol agora é um objeto da máquina financeira. Um produto de exportação em massa. Nem a Seleção Brasileira encanta mais. É difícil encontrar estádios que se lotam ao ponto de ter pessoas dependuradas nos lustres. Até os palavrões, tão defendido por Nelson na crônica “Bocage no Futebol”, estão com os dias contados nos estádios de futebol. Se ele ainda estivesse vivo, e precisasse sobreviver para escrever do futebol contemporâneo, certamente faria isso com lágrimas nos olhos. O mundo da bola tomou um rumo totalmente diferente daquele que Nelson Rodrigues idolatrava. Seria um desgosto enorme ter que conviver com o futebol de hoje. Feito isso, uma certeza se forma: Nelson viveu no seu tempo. Nasceu para escrever sobre aquela época, e fez isso com total autoridade, destreza e competência. Um gênio.