Rosa Santana 15/04/2020
O título do romance já diz o que José Saramago, esse renomado autor, detentor do Nobel de Literatura, se propõe a contar nas 415 páginas que se abrem diante do leitor.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, nasceu na cidade do Porto, Portugal, em 19 de setembro de 1.887. De formação jesuíta, estudou Medicina e se mudou para o Brasil, em 1.919 expatriando-se espontaneamente por ser monárquico e discordar da Proclamação da República Portuguesa. Não se teve mais notícias dele. Sua poesia apresenta uma visão contemplativa do ?espetáculo do mundo?, sem nele interferir, para voltar-se ao aperfeiçoamento interno, sem paixões: uma poesia clássica, fria, sem emoção, ao estilo pregado por Horácio, descrevendo mulheres diáfanas, irreais, deusas inatingíveis. Assim criou-o Fernando Pessoa, não dando data para sua morte.
Então entra em ação a narrativa de José Saramago, que poderia nos apresentar um Ricardo Reis tal qual fora criado, mas, surpreendentemente, ele o transforma em outra criatura, transcendendo a ?original?, se assim a pudermos chamar: leva-o para Lisboa em um navio em 30 de dezembro de 1935, um dia chuvoso e frio, dois dias depois que seu criador, Fernando Pessoa, foi sepultado. Coloca-o em contato com pessoas de carne e osso, que participam ativamente da política, da vida econômica e social de Lisboa; coloca Lídia, homônima de sua personagem na poesia, que, ao contrário daquela, nutre grande humanidade em si: por ele, então seu amante, pelo irmão, pelo filho de ambos que, ao final, está em seu ventre; coloca-o de frente com investigadores de Salazar, com a pobreza da cidade; e, mais, coloca-o cara a cara com nada mais nada menos do que com seu criador, o defunto Fernando Pessoa, que o vem procurar para longas conversas acerca de variados assuntos. Mas, sobretudo, daqueles concernentes à obra de cada um deles!
Por longa pesquisa feita, o autor vai levando o leitor para o ano de 1.936, contando-lhe fatos nacionais e mundiais das mais diversas áreas; fala da eleição na Espanha, em que vence os ?comunistas?, da consequente tomada do poder pelo general Franco, implantando a ditadura; da ação de Salazar, em Portugal, também ditador; Mussolini na Itália empreendendo guerra contra a Somália; Hitler ascendendo na Alemanha... Enfim, Ricardo Reis é colocado nesse cenário de guerra e de desigualdades sociais a que Saramago sempre combate! É esse o espetáculo do mundo que ele tem para admirar. A grande questão é: como não interferir, ficar passivo diante desse quadro de violência e de matança? Apesar de não ser o frio e distante ser criado por Pessoa, em alguns momentos senti vontade de sacudi-lo e dizer: reage! porque ele sente emoção diante dos acontecimentos, embora não seja o bastante para levá-lo a ação!
Assim acompanha ele o desenrolar dos fatos: diariamente compra jornais para contemplar a maravilha do mundo; recebe a visita da amante em seu apartamento alugado, até que ela decide não ir mais vê-lo; divaga pelas ruas e conversa com Fernando Pessoa! Até que este lhe diz que não voltará mais. Então, nosso protagonista diz que se vai, definidamente com seu mestre! E morre Ricardo por não ter mais a luz do seu criador!
Saramago com sua grande capacidade de construção, foi capaz de respeitar a personalidade de cada um dos envolvidos na narrativa, mas não sem dar pinceladas filosóficas segundo sua órbita! Os diálogos travados pelo criador com sua criatura, dirigidos logicamente pelo narrador, reabilitam, ainda que de leve, aos olhos do leitor o reacionário Fernando Pessoa que, como conhecemos emitiu opiniões que nos parecem desumanas acerca de assuntos concernentes às questões políticas e sociais da época. Assim, diz FP: ... você esquece a importância das contradições, uma vez fui eu ao ponto de admitir que a escravatura fosse uma lei natural da vida, das sociedades sãs, e hoje não sou capaz de pensar sobre o que penso do que então pensava e me levou a escrevê-lo (página 384)
Quem lê a narrativa vê, com certeza, José Saramago, Fernando Pessoa e Ricardo Reis: uma soma dos três grandes escritores, como diz esse trecho ao final, quando Reis e Pessoa se despedem do leitor, se encontrando, à nossa vista, pela última vez: ?Ricardo Reis tem uma curiosidade para satisfazer, Quem estiver a olhar para nós, a quem é que vê, a si ou a mim, Vê-o a si, ou melhor, vê um vulto que não é você nem eu, Uma soma de nós ambos dividida por dois.? (Página 394). Assim também, a soma dos três, dividida por três resulta em O Ano da Morte de Ricardo Reis!
Achei delicioso me deparar com vários trechos das criaturas de Fernando Pessoa, todos muito bem contextualizados, resultado da grande capacidade de escrita de Saramago.
Obrigada, Pessoa, pela genialidade da criatura, Ricardo Reis; obrigada, Saramago, por lhe dar vida, e fazê-lo descansar em paz.