Arsenio Meira 25/10/2013
FERNANDO PESSOA, SARAMAGO E OS TÚNEIS LITERÁRIOS REFLEXIVOS
Fernando Pessoa morreu no dia 30 de novembro de 1935, em Lisboa. Lá foi enterrado. Os seus despojos mortais repousam no Mosteiro dos Jerônimos, para onde foi trasladado do cemitério dos Prazeres, na comemoração do cinquentenário de sua morte.
Mas a verdade é uma senhora de mil faces. Foi só um quarto dele que morreu naquele dia. O outro quarto já tinha morrido, e os restantes ficaram vivos e perambulam por aí; ou pelo menos, não há registro da morte deles.
Todos sabem que Pessoa não era um só, mas no mínimo quatro: o Ele-mesmo, e os heterônimos Ricardo Reis, Alberto Caeiro e Álvaro de Campos. E, copiosos estudos e ensaios já descobriram outros heterônimos, mas fiquemos por enquanto com estes, senão a gente endoida.
Quando Fernando Pessoa morreu, escapou a todos a ideia de que pelos menos dois dos seus heterônimos escaparam da morte. Todos, não. O Romancista José Saramago, que dispensa apresentações, deu pela coisa e foi ver o que teria acontecido com um dos sobreviventes. O resultado foi o excelente romance "O Ano da morte de Ricardo Reis", que li - lembro bem - no ano de 2008, em que casei.
O romance prende o leitor da primeira à última página, quer esse leitor seja um frequentador assíduo da obra de Pessoa, quer seja aquele, improvável, que dele nunca ouviu falar. Porque é um romance com atributos pesoanos e atributos ficcionais próprios.
Ricardo Reis, o médico latinista que retorna à Pátria depois de um longo e tenebroso inverno, tem uma consistência não só pessoana, mas pessoal. Saramago constrói sua personagem com notável verossimilhança. A vida de Ricardo Reis não é marcada por acontecimentos retumbantes (o que é coerente com sua personalidade contemplativa e inadaptada), mas ela se insere num momento particularmente intenso e dramático da história europeia e portuguesa.
Em Portugal, é a consumação da ditadura salazarista; na vizinha Espanha, são os atritos que prenunciam a guerra civil que matou Lorca e entronizou Franco (uma prova cabal de que as coisas andam tortas faz é tempo...); na Alemanha, é a ascensão do diabo nazista, e na Itália, idem.
Como poeta, Ricardo Reis enunciara uma filosofia cética, quase nas linhas de Pirro, baseada na renúncia à ação, na abdicação a qualquer projeto de intervir no destino de quem quer que seja, pregando apenas o aperfeiçoamento interior do ser humano, e um melancólico epicurismo, que resumidamente, consiste em sorver pequenos prazeres do presente antes que a indesejada das gentes chegue e leve tudo de roldão...
"Sábio é aquele que se contenta com o espetáculo do mundo...", escrevera Reis numa de suas odes. O Reis de Saramago, nos meses que seguem à sua volta à pátria, percebe que não é moleza ser um mero espectador do mundo. No terreno individual, eis que o destino lhe prega algumas peças. Apaixona-se simultaneamente. Ricardo Reis, sob a tutela de Saramago, cede às tentações do mundo carnal. No campo político, ele remodela seu pensamento com sensibilidade e lucidez.
Sabe-se que Saramago pesquisou minunciosamente os extratos históricos, mediante leitura atenta aos jornais e revistas da época e de outras fontes, que a abundancia e precisão de pormenores indiciam. Mas seu grande mérito é passar tudo isto "ao vivo", colocando sua Majestade, o Leitor, bem próximo das ruas portuguesas e do rio Tejo, sem o menor ranço de erudição documental.
Mais do que um mero jogo literário, o que por si só já seria fascinante, a criação prosseguida da ficção heteronímica resulta aqui numa reflexão aberta e genuína sobre a identidade portuguesa; com o adendo de que todo convívio com a obra de Fernando Pessoa leva a uma reflexão sobre identidade.
É isso. Mais um livro que eu havia esquecido de cadastrar e avaliar. Um livraço, como dizem.