Ana Maria 18/10/2018
Quando cineastas, produtores, roteiristas perceberem que a ditadura civil-militar brasileira está longe de ser tema esgotado, especialmente em tempos de tendencioso revisionismo histórico, oxalá a obra de Bernardo Kucinski os acolha de braços-páginas abertos. K.: relato de uma busca, se transformado em filme, poderia ter trilha sonora das mais minimalistas. Nada do lugar comum, Chicos, Caetanos, Gilbertos ou Miltons cantando as mazelas de um regime autoritário; bastaria o tu-tu-tu de um telefone após ligação sem resposta, um outro lado da linha vazio, indício da ausência de alguém com quem se deseja falar. O som acompanha a leitura do sufoco de K., escritor e comerciante judeu à procura da filha desaparecida.
A estrutura do romance contribui para afligir o leitor. Sabe-se, já no começo, que Kucinski é irmão de uma desaparecida política a quem a burocracia dos bancos, que desconhece questões de carne e osso, continua a enviar cartas com ofertas. É esse o mote para que o autor jogue com realidade e ficção, e arquitete a busca de um pai pela jovem militante e professora do Departamento de Química da USP – como foi Ana Rosa Kucinski, sua irmã. Não existe, portanto, qualquer alívio em fechar o livro: tudo nele “é invenção, mas quase tudo aconteceu”. Fragmentos de outras vozes, como a do marido guerrilheiro, a do torturador que mobiliza seus capangas, ou a da psicóloga do INSS que atende uma funcionária da Casa da Morte, testemunha de prisões e torturas, também compõem a colcha de retalho dos anos de ditadura.
É interessante notar como Kucinski esquadrinha, durante a busca de K., as principais estratégias militares para esmorecer as famílias das vítimas: espalhar pistas falsas, confundir, dar esperanças e tomá-las de volta, incutir nos próprios parentes a culpa pelos sumiços. Fica impregnada, aliás, a sensação de que se perdeu não a mulher madura, doutora e dona de si, mas a caçula, loira e frágil, graças ao desinteresse da mãe, deprimida, e à distração do pai, muito ocupado com sua loja, seus poemas e a língua iídiche.
K. é construído (e/ou retratado, para não esquecer o duo realidade e ficção), mesmo no auge de seu desespero, como o homem da Dor elegante de Lemisnki: “Carrega o peso da dor / Como se portasse medalhas / Uma coroa, um milhão de dólares / Ou coisa que os valha”. Um dos maiores méritos de Kucinski é não permitir que o tom da narrativa descambe para o excessivamente didático ou piegas – como o fazem muitos autores contemporâneos, afobados, sem perceber, ao escrever sobre um tempo que não viveram. Mas que não se duvide, em momento algum, da imensa devastação que restou sob a marcha dos coturnos.