Arsenio Meira 26/03/2014
"Pra Frente Brasil"
O livro dói. Conseguir expurgar uma parte dessa dor pessoal e coletiva é tarefa para poucos. Bernardo Kucinski faz parte dos poucos. K. é um senhor de idade já consolidada. Traz no sangue o sofrimento incalculável de ter sido vítima do holocausto. É um sobrevivente (prisioneiro) dos progroms, da fúria genocida. Escapou, mas traz o horror estampado na mente. Sobrevivente/prisioneiro da melancolia, como ele diz/relata. Imigrante, veio para o Brasil. A comunidade judaica o recebe. É Poeta, intelectual confinado nos grotões de uma língua natimorta: o iídiche. Ele e poucos sobreviventes consagram ao iídiche o carinho de não esquecê-lo.
Faz/fez a vida como comerciante. Casa com uma sobrevivente como ele, tem três filhos. É afetuoso, ao seu jeito. Sua faina é o comércio. A esposa sucumbe à dor do comunicado oficial: Todos os seus familiares morreram nos campos de concentração. Todo sobrevivente carrega uma esperança desesperada de, ao menos, encontrar algum irmão, primo, tia, mãe, pai, afilhado, irmã. Nada lhe sobrou. Ela diz adeus aos filhos, e a filha mais nova é a que mais sofre com essa renúncia feita a custa sabe-se lá de quanto desespero. A caçula recebera da mãe, apenas a indiferença e só.Mas o pai sente isso, e tenta fazer algo. À maneira peculiar de seu olhar, ele tenta. Acontece que os filhos crescem. Os homens vão para o mundo. A Garota também vai, com seu doce olhar triste, seus fantasmas, gradua-se em grau máximo na universidade de Química. Um belo dia, desaparece. Some. Evapora-se. Adeus. A época: o auge dos anos de Chumbo, repressão, ano 70, Brasil.
K. reinicia seu calvário. Dois calvários para uma única vida. Agora, há um outro olho/consciência, como luz de cabeceira sobre o seu remorso. As paredes tem ouvido. É tempo de tortura. As paredes... ainda recordam e guardam a mancha, a impressão dos gritos ferozes, das grades receptoras do sangue salpicado. Os agentes são sombras, cada insígnia traz o aviso de que as janelas não foram abertas, e sequer aberturas rasgadas existem. Mas K. persiste em seu calvário para receber - pelo menos - o corpo da filha.
É ficção, "mas (quase tudo) aconteceu". Eis a triste epígrafe do livro. O vento não passa, não existe céu livre ou brisa que desfralde o azul. Mas K. persiste. Embora lá fora, o radinho de pilha anuncie: "Noventa milhões em ação/pra frente Brasil..." Anuncia. Mas cala o coração dos pais despedaçados em busca de uma única notícia sobre os filhos desaparecidos. É que, enquanto a bola rola, o pau-de-arara mata, cerra a cortina sobre os corpos fatiados, postos em compotas, em pedaços.
Mas "tudo é um só coração, vamos todos juntos, pra frente Brasil, Brasil..." Tudo é um só tratamento de choque. O coração de K. bate em pane, preso entre as quatro paredes arruinadas do seu corpo de sobrevivente. K. descobre que nos quartos e na TV, o esquadrão de ouro/da morte toca a bola, manda bala, não há mais samba, porra de samba, ele é bom é no couro (arrancando-o) e, se a Copa do mundo é nossa, como ser humano, K. pensa se há quem possa esquecer que fora do estádio, dos gabinetes, dos festivais, expulsa das arquibancada, estropiada, cega, surda e muda, a esperança dos pais dos filhos desaparecidos explode e não aceita a dor de não saber.