3.0.3 11/03/2024
Stephen Dedalus e a fuga do labirinto
“A sua linguagem, tão familiar e tão estrangeira, será sempre para mim uma língua adquirida. Nem fiz nem aceitei as suas palavras. Minha voz segura-as entre talas. A minha alma gasta-se na sombra da sua linguagem.”
Um retrato do artista quando jovem (1916), de James Joyce (1882-1941), narra a perda de uma vocação sacerdotal e o alvorecer de um chamado artístico. Considerada uma obra quase autobiográfica, o livro capta a mente de Stephen Dedalus de forma eficaz, descrevendo a jornada de um artista através de seu eu. Nela, Dedalus tenta alcançar as coisas que mais importam, enquanto busca encontrar seu lugar no mundo. O romance acompanha Stephen Dedalus em seus anos de formação e aprendizado no final do século XIX na Irlanda. A narrativa nos brinda com cenas sobre a sua família – dividida entre o catolicismo ortodoxo e o movimento nacionalista irlandês –, sua criação no internato Clongowes Wood, a educação dada pelos jesuítas em Belvedere College, os anos na University College Dublin e, finalmente, sua decisão de se tornar um literato.
Percebemos que Dedalus é nitidamente um aluno distinto, altamente dotado de atributos intelectuais, com uma predisposição inata para a poesia e uma sensibilidade artística marcante, que é complementada por sua personalidade especial e nobre. Dedalus queria deixar a vida fluir através das fendas de sua mente para peneirar sentimentos, impulsos e significados, queria encontrar o que sua alma inquieta desejava: aquele fragmento primitivo de verdade. Mas o mundo se intrometeu em seus intentos e plantou nele sementes de dúvida.
A jornada de Dedalus não é nada fácil. Seus tormentos eram muitos: as compulsões da disciplina acadêmica, os atos de selvageria dos colegas que eram despreparados para lidar com uma opinião divergente, os castigos físicos, a miséria socioeconômica cada vez mais visível, a lavagem cerebral com água benta e o medo onipresente de cometer alguma heresia a cada pensamento ou ação. Dedalus fica perplexo com seus próprios desejos sexuais. Apesar de ser sensível, articulado e inteligente, o jovem enfrenta emoções intensas e conflitantes de luxúria, incerteza e insegurança. Em alguns momentos, ele se culpa por sua vida promíscua, pecaminosa e desenfreada. Dedalus se sente acuado, acha que Deus vai castigá-lo sem qualquer compaixão e se perde em sofrimentos. Os sermões do padre Arnall sobre a morte, o julgamento e o inferno são particularmente encantadores – até mesmo Dante não conseguiria ser tão preciso e sensorial em suas descrições de escuridão, chamas e estertores intermináveis que as almas condenadas devem suportar. Ao contrário de Dante, os sermões na obra são carregados de ironia e blasfêmia. Um retrato do artista quando jovem nos lança às profundezas do coração humano narrando os sentimentos conflitantes de Dedalus por meio do fluxo de consciência – técnica que nos faz habitar os campos consciente e subconsciente, proporcionando vislumbres das realidades objetivas e subjetivas. Essas explosões narrativas acontecem de múltiplas maneiras e com bastante ênfase: são imagens, sons, memórias, aromas e sensações táteis.
A escolha do sobrenome do protagonista está associada ao mito grego de Dédalo – artesão da cidade de Atenas responsável por construir o labirinto do Minotauro e o par de asas que deu para o seu filho Ícaro. Artista habilidoso, o Dédalo mítico acabou preso no labirinto que construiu para aprisionar o Minotauro. Assim como ele, o Dedalus joyciano também se vê preso em um labirinto construído por forças externas. Ele compreende que, ao trilhar os caminhos ditados por outros, nunca encontrará de fato uma saída ou experimentará a verdadeira realização. Ao longo da narrativa, Dedalus encontra falsas saídas do labirinto, mas nenhuma delas proporciona a fuga desejada. Assim, metaforicamente, Dedalus deseja construir um par de asas para transcender as adversidades, ultrapassar as fronteiras de Dublin e alcançar uma vida dedicada à arte.
A obra mistura várias referências literárias, filosóficas e teológicas ao cotidiano da vida irlandesa, com explosões poéticas. Ainda que Dedalus perca a fé, é evidente que sua visão sobre arte e literatura está impregnada de doutrina cristã. O livro é cheio de citações latinas, com ideias filosóficas que se referem à teologia medieval e à filosofia grega, como Tomás de Aquino, Agostinho, Aristóteles etc. Sobre isso, a obra demonstra grande erudição em relação à Poética de Aristóteles e à filosofia de Aquino, sobretudo no campo da estética. Em alguns trechos, quando trava diálogo com Estêvão e seu amigo Cranly, percebemos o domínio de Dedalus ao mencionar os atributos de beleza propostos por Aquino e ao dissertar sobre as formas dramática, épica e lírica. Sob todos esses discursos filosóficos que transbordam efusivamente, irrompe outra forma de estética, que é mais musical, sensual e rítmica.
Segundo a obra, a imagem estética dramática é a vida reprojetada na imaginação humana. O artista, na condição de Deus da criação, permanece invisível em sua obra, indiferente, refinado fora da existência. Dedalus postula que o desejo deve ser direcionado para o bem, sendo o verdadeiro e o belo os objetos de desejo mais duradouros. Embora reconheça que a beleza é subjetiva, Dedalus realça o conceito de beleza universal. Além disso, destaca o instante em que o sujeito compreende e aprecia as qualidades do objeto artístico, pois essa experiência proporciona um encantamento espiritual do coração. Dedalus conclui que a responsabilidade de um artista é distanciar-se de sua obra e agir indiferente a ela, permitindo-lhe existir de forma independente. Assim, obtemos a revelação do fluxo interno dos pensamentos, e o fluxo de consciência ditado por Joyce nos encanta e nos espanta. Quando lemos expressões, pensamentos, sensações, epifanias, é como se nós estivéssemos passando por aquilo, não os personagens.
Dedalus tentara erguer um quebra-mar contra a sórdida maré da vida para represar a recorrência estrondosa das ondas dentro de si. Inútil. Tanto de fora quanto de dentro, as águas atravessaram todas as barreiras e recomeçaram a se agitar ferozmente acima das ruínas. Durante a narrativa, acompanhamos uma personagem cuja garganta dói de tanta vontade de gritar – grito de falcão ou de águia –, de tanta vontade de libertar-se ao vento. Esse é o chamado à sua alma, não a voz desumana que o chamava ao altar, não a voz enfadonha do mundo dos deveres e do desespero. É um instante de fuga selvagem. E o grito que a sua garganta retinha fende a sua mente. A sua imagem passara para sempre em sua alma, e nenhuma palavra fora capaz de quebrar o sacro silêncio de seu êxtase. Os olhos chamaram Dedalus, e a sua alma se lançou ao chamado. Recebeu ali o anjo selvagem, um enviado para lhe abrir – num instante de êxtase – as portas de todos os caminhos do erro e da glória.
E Dedalus se rebelou e triunfou contra a embriaguez da doutrinação religiosa e contra aqueles que exigiam dele um fervor patriótico. A enxurrada implacável de catecismos que desdenhava das condições humanas não o lançou à culpa. Ele encontrou a sua santidade no amor, na beleza e na entrega silenciosa ao desejo mortal. O labirinto de iscas não conseguia mais estrangular sua ambição de escapar de seus estreitos limites. Assim, enquanto todos ao seu redor se ocupavam em buscar relevância ou prestígio social na vida, Dedalus permanecia imperturbável, pois agora aspirava ao cumprimento de um objetivo maior, tendo encontrado sua fé na legitimidade da arte e em seu poder de conferir sentido ao caos perpétuo da existência. Para recriar a vida a partir da vida – errando, caindo, triunfando e vivendo.
O apreço de Umberto Eco (1932-2016) pelas obras de James Joyce é digno de nota. Ambos receberam uma rigorosa educação católica, e, assim como as obras de Joyce, Eco enxertou em seus trabalhos diversas citações latinas e referências a padres da igreja. Em síntese, James Joyce, Umberto Eco, Jorge Luis Borges (1899-1986) e J. R. R. Tolkien (1892-1973) são alguns exemplos de autores contemporâneos com almas medievais.
Também podemos mencionar que Um retrato do artista quando jovem poderia ser lido como uma obra que segue na contramão de Confissões, de Santo Agostinho. Enquanto Agostinho expressa a sua gratidão a Deus por afastá-lo de sua juventude libidinosa e libertina e convertê-lo ao ascetismo e à religião, Joyce narra a juventude de Stephen Dedalus como um tempo de tormento moral, libertinagem esporádica, encontros românticos e breves vislumbres de alegria. Diferentemente de Agostinho, Dedalus, no final, resolve emergir sob a autoridade da igreja, desviar-se da sua família e da pátria e fugir em direção ao silêncio e ao exílio.
Cabe salientar que esse é um dos livros mais compreensíveis de James Joyce, pois, em vez de usar o fluxo de consciência ou o monólogo interior de forma desenfreada, ele opta por um estilo indireto livre, por diálogos perfeitamente construídos, por uma narração clássica em terceira pessoa e por um final com algumas datas anotadas em um diário escrito por Dedalus. Com doses poéticas de alto calibre e com a assinatura inconfundível de Joyce, Um retrato do artista quando jovem é um excelente livro. Com o passar do tempo e da leitura, Joyce se torna um escritor realmente interessante. A sua maestria literária e a sua genialidade narrativa o transformam em um artista completo.
“Vou te dizer o que farei e o que não farei. Não servirei aquilo em que não acredito mais, chame-se isso o meu lar, a minha pátria, ou a minha igreja: e vou tentar exprimir-me por algum modo de vida ou de arte tão livremente quanto possa, e de modo tão completo quanto possa, empregando para a minha defesa apenas as armas que eu me permito usar: silêncio, exílio e sutileza.”
“Fizeste que eu confessasse os pavores que tenho. Mas vou te dizer também o que não me apavora. Não tenho medo de estar sozinho, de ser desdenhado por quem quer que seja, nem de deixar seja lá o que for que eu tenha que deixar. E não tenho medo, tampouco, de cometer um erro, um erro que dure toda a vida e talvez tanto quanto a própria eternidade mesma.”