Queria Estar Lendo 24/10/2017
Resenha: Minha Doce Audrina
Hoje vamos com a resenha de Minha Doce Audrina, um livro publicado há muito no Brasil e que fui obrigada a reviver graças a um filme da Lifetime -- a adaptação foi terrível, mas obrigada ao canal por me fazer descobrir ele!
A história se passa no sul dos EUA, em um casarão que remota aos tempos da guerra civil, a mansão dos Whitefern. Uma vez pertencente a uma rica e influente família do sul, hoje o casarão é decadente e abriga uma família bizarra e cheia de segredos.
Lá vive Audrina, uma garota de 7 anos, com seus pais, Damian e Lucietta Adare, e sua tia e prima, Ellsbeth e Vera Whitefern, respectivamente. A protagonista, Audrina, vive isolada na mansão, sem permissão de ir a escola ou mesmo de andar no bosque em sua propriedade, isso porque, diz seu pai, ela é "especial". Mas Audrina não se acha especial, com sua memória de queijo suíço que lhe deixa sem saber o que fez da vida até os sete anos e que lhe confunde os dias. Sua casa não tem espelhos, os relógios estão todos desregulados, os jornais não chegam ao casarão e não há calendários. Além do mais, ninguém lhe diz que idade eles tem, nem mesmo sua prima Vera, e não há festas de aniversário. A contagem de tempo ali é irregular e confusa, o que não colabora para Audrina recuperar suas memórias.
Tudo isso graças a primeira Audrina, sua irmã mais velha, morta nove anos antes dela nascer. A Primeira e Melhor Audrina era a menininha perfeita, a menina dos olhos de Damian, e tudo que a Segunda e Pior Audrina quer é poder ser ela mesma -- mas seu pai tem outros planos. Todas as noites, Audrina precisa se sentar na cadeira de balanço da sua irmã morta e reaver o "dom" dela. Seu pai lhe diz para transformar-se no cântaro vazio que será preenchido com o dom da Primeira e Melhor Audrina e finalmente terá sua menininha perfeita de volta.
A história segue a vida de Audrina por sua infância, adolescência e vida adulta, enquanto ela tenta se tornar a pessoa que seu pai espera e, ao mesmo tempo, descobrir que mistérios cercam sua família.
O livro é um dos mais originais que já li, mesmo já conhecendo o plot pelo filme e pelo resumo da wikipedia -- porque eu sempre procuro quando o filme é baseado em um livro que eu não tenho previsão para ler -- fui surpreendida de formas muito positivas. O horror de V. C. Andrews é psicológico e nos deixa puxando todas as pontas soltas enquanto tentamos amarrá-las.
Audrina é uma criança que não entende o desejo do pai de transformá-la em sua irmã morta e porque ela, como é, não é o suficiente para ele. Seu pai, Damian, gaba-se de ser um homem moderno, mas foi feito aos moldes do homem que deve ser o provedor, do homem que é melhor que todo mundo e não aceita ser ofuscado por mulheres, o que resulta em relacionamentos verbal, emocional e fisicamente violento. O típico machista controlador, misógino e, me arrisco dizer, psicopata.
Enquanto tenta convencer Audrina de que ele é o único homem em quem ela pode confiar e lhe diz que ela é a única pessoa capaz de amá-lo incondicionalmente, ele deixa transparecer sua natureza mesquinha, egocêntrica e violenta.
Damian é uma figura central na história, cujas ações moldam o passado e o futuro de sua filha, assim como a vida da sobrinha, Vera. Ele tem charme e encanta as pessoas, ganha sua confiança e depois garante a dependência delas, seja de forma afetiva e/ou financeira. Quando contrariado ele deixa transparecer o lado cruel, como as palavras duras para a cunhada, Ellsbeth; no tratamento cruel e indiferente a sobrinha, Vera; e no abuso físico e psicológico que inflige em sua esposa, Lucietta, que tenta revidar apenas para encontrar-se cada vez mais dependente. A única que, aparentemente, escapa dos abusos do pai é Audrina, mas conforme avançamos a leitura somos capazes de perceber que o tipo de abuso que ele pratica com ela é ainda pior, uma vez que aproveita-se da confiança, do amor e da inocência da garota, para criar laços de dependência e manipula-la a sua vontade.
As outras personagens da história compõe um núcleo pequeno, mas tão bem desenvolvido quanto Damian e Audrina. A mãe, Lucietta, uma musicista talentosa que abandonou uma promissora carreira para casar-se com Damian, mesmo contra tudo que acreditava e queria para si mesma; a tia, Ellsbeth, meia-irmã de Lucietta, uma ex-professora primaria rigorosa e fria, com uma língua afiada e incapaz de demonstrar sentimentos por qualquer um da família, mesmo sua filha. Vera, a prima mentirosa e invejosa, sempre tramando algo para fazer Audrina sofrer ou envergonhar-se, jogando sujo em busca do afeto de Damian e de qualquer coisa que possa magoar Audrina; Arden, um garoto que muda-se para a cabana do jardineiro no outro lado da mata e configura o único e melhor amigo de Audrina -- e também seu interesse amoroso -- que luta com unhas e dentes para manter; Bonnie, a mãe de Arden, outrora uma patinadora e hoje tão cheia de segredos quanto a própria Audrina; e Lamar Ransdale, o bonito professor de piano de Vera e Audrina.
Juntos, em uma trama repleta de mistérios e segredos que a própria narradora desconhece, os personagens constroem uma saga que não precisa de muito para tornar-se atrativa.
Como o livro é da década de 80, eu estava pronta para relevar diversas coisas, mas encontrei uma narrativa muito atual e relevante. Em verdade, a única coisa que me incomodou foi a forma como os personagens se referiam a Sylvia, uma personagem com dificuldade de aprendizagem constantemente chamada de estúpida, retardada ou idiota. Mas fiquei muito contente em constatar que o tom da leitura era mais de crítica do que de romantização das situações monstruosas que aconteciam a Audrina.
Como a narrativa é em primeira pessoa é possível ver o desenvolvimento dos pensamentos de Audrina, que passa a constatar os abusos cometidos pelo pai e os motivos por trás da personalidade da tia e da prima, o que a leva a questionar e chegar a conclusões próprias.
Também, devido a grande manipulação, abuso e opressão que Audrina sofre, observamos enquanto ela encontra justificativas para algumas dessas ações que permitam com que ela siga amando e admirando o pai, por exemplo. A personalidade da narradora é parte essencial da forma e dos fatos que ela nos conta. Para mim, foi algo refrescante de encontrar em Minha Doce Audrina, uma vez que grande parte das narrativas em primeira pessoa que encontro hoje em dia raramente são afetadas pela visão de mundo e pelo condicionamento da personagem narradora.
Para mim, ainda, o livro traz um retrato do estado vulnerável da mulher, representados por todas as personagens femininas, que se encontram em posições cuja resistência não mais encontra espaço -- mesmo quando Audrina, por exemplo, tenta livrar-se do pai, acaba caindo em uma situação semelhante maquiada como "melhor". Essas mulheres foram criadas para desacreditarem em si mesmas, para sentirem-se culpadas por colocarem-se em primeiro lugar; criadas para odiarem uma a outra em detrimento a um homem e subjugadas de acordo com as vontades do homem que considera-se o Deus da casa. Não é raro encontrar passagens onde Audrina reflete sobre as suas condições quanto mulher ou a da tia e da mãe, e mesmo da prima.
É difícil fazer a leitura completa do livro e não analisar esses papeis e como resistir, como ser mais forte e sair por cima. Audrina tenta mostrar que pode salvar a si mesma e acaba por expor como a rede de um relacionamento abusivo é ainda mais pegajosa do que acreditamos.
Por fim, Minha Doce Audrina é uma história trágica de horror que termina de forma tão trágica e horrorosa quanto seus segredos, e uma leitura que recomendo fortemente. Por um momento, antes de começar a leitura, julguei que estaria me deparando com uma história distorcida e romantizada, dado o teor polêmico dos livros de V. C. Andrews, mas foi uma grata leitura que me fez sentir horror, dor e uma dose cavalar de "Audrina Adare merecia mais".
Mas fique alerta, aos fracos de coração e estômago, a forma crua e direta como a autora narra os acontecimentos pode deixar vocês tontos.
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