Fernanda Pompermayer 30/05/2015
O ano era 1926. Uma dama inglesa desaparece de casa. Seu carro é reconhecido às margens de um lago, com as portar abertas, vazio. Suspeita-se de sequestro, suicídio, até de assassinato. Doze dias depois a mulher é localizada em um hotel a 300 quilômetros de Londres, graças a um funcionário que viu as fotos nos jornais noticiando o desaparecimento. Mas o nome no registro do hotel não bate: Theresa Neele, o mesmo sobrenome da amante do marido.
É interessante, mas essa não é a trama do livro. É parte da história da própria autora. E a autora, Mary Westmacott... – bem, esse também é um pseudônimo. Seu verdadeiro nome é Agatha Mary Clarissa Miller Christie, ou, simplesmente, Agatha Christie.
Agatha (1890-1976) escreveu mais de 80 livros, que venderam mais de dois bilhões de cópias, em 50 idiomas diferentes. Ela só perde para a Bíblia e para Shakespeare. É autora também de uma dúzia de obras teatrais.
Mas Entre dois amores não é um livro policial. Longe disso! É uma das seis obras da Rainha do Crime escritas sob esse misterioso pseudônimo. Estudiosos da sua biografia acreditam que ela possa ter se despojado do nome para poder também desprender-se de um estilo que se tornou a sua marca registrada e se aventurar em outro, mais psicológico e introspectivo, no qual ela utiliza magistralmente a sua capacidade de perscrutar o comportamento humano.
Na sua autobiografia (1965), Agatha descreve esse insight: “Com certo sentimento de culpa, diverti-me escrevendo um romance chamado O Gigante (Giant´s Bread, em português Entre dois amores). Era sobretudo a respeito de música, e desvendava, aqui e ali, que eu possuía alguns conhecimentos técnicos no assunto. A crítica foi boa e vendeu-se razoavelmente para o que era considerado ‘primeiro livro’. Usava o pseudônimo de Mary Westmacott e ninguém sabia que o livro fora escrito por mim. Consegui conservar esse fato por 15 anos.” (Autobiografia (II), Nova Fronteira, 1977, p. 493)
O livro tem como fio condutor a música, ou melhor, o papel avassalador que a música exerce na vida de um jovem que se vê constantemente dividido “entre dois amores”. Esses dois amores podem ser as duas mulheres da sua vida, ou também cada uma delas – a seu tempo – e a música, esta sim, sua verdadeira paixão.
Agatha/Mary penetra profundamente na alma humana, nos anseios, dramas, marcas, sonhos... de cada um dos personagens. E começa descrevendo uma criança: as percepções que ela tem do mundo e que pouco a pouco vão se ampliando, tomando forma, assumindo nomes e conceitos. Ela faz isso com uma habilidade incrível, conduzindo o leitor à compreensão do caráter do adulto em que esse menino irá se transformar um dia. E depois conta a história dele, de Vernon Deyre, herdeiro de uma aristocrática – e falida – família britânica.
Talvez não seja oportuno revelar mais detalhes, uma vez que uma característica a ser respeitada em Agatha é o suspense na dose certa.
Toda a coleção de seis livros de Mary Westmacott, publicada no Brasil pela L&PM, é muito rica e variada. Uma prova de que, além de entender de crimes, a dama inglesa entende muito bem da natureza humana.
site: Resenha publicada por mim na revista Cidade Nova, janeiro 2015 (www.cidadenova.org.br)