Carla.Parreira 19/11/2023
Abadia dos Beneditinos (Wera Krijanowsky/Conde J. W. Rochester)...
Três narrativas se entrelaçam no mesmo período de tempo, o século XIII, enquanto exploram as tramas macabras que ocorrem na Abadia dos Beneditinos, uma ordem religiosa que aparenta ser um santuário de pudicos poderes e orações. A primeira narrativa é de Peter Sanctus, que fala de sua vida, como foi parar na abadia e seus planos de vingança. A segunda é de Hugo de Mauffen, que em uma de suas encarnações foi o imperador romano Tibério. A terceira é do próprio John Wilmont, segundo conde de Rochester, durante sua encarnação como Lotário de Rabenau. As narrativas se cruzam em vários momentos, ajudando a compreender a história. Em meio a um ambiente de medo e superstição medievais, a obra revela a conspiração de uma organização secreta dentro do rígido mosteiro, onde vinganças e perseguições ultrapassam o limite da vida física, envolvendo invocações, aparições e obsessões interpretadas como feitiçaria e rituais demoníacos.
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Melhores trechos: "...Ninguém lá descia e eu estava certo de não ser incomodado. Prendi a tocha num gancho de ferro e assentei-me no rebordo de uma campa. De todos os lados e, tão longe quanto o olhar podia alcançar, elevavam-se monumentos funerários e as próprias paredes estavam revestidas de placas de mármore ou de bronze. A luz oscilante da tocha fazia surgir da escuridão, ora a silhueta de um cavaleiro ajoelhado, ora a cabeça de uma mulher de mãos postas, ou algum escudo - último sinal da estulta vaidade humana. E eu considerava melancolicamente: todas aquelas criaturas, cujas efígies ali apareciam litografadas, estavam mortas de há séculos, tinham-se engolfado no ignoto nada e também lhe haveriam sondado o mistério ! Esse problema da morte, que tanto me interessava, de novo me empolgou. Não sei quanto tempo ali sonhei, senão que estremeci quando o sino badalava a meia-noite... Logo de entrada, deparei com o prior, de pé, nos degraus do estrado! Revestia o hábito, mas tão despreocupadamente que deixava entrever a túnica de cavaleiro e, no peito, reluzentes, as insígnias dos Rabenau. De cabeça alta e descoberta, fitava a tumultuosa assembléia com olhos intrépidos, por vezes arrogantes. Um pouco à frente dos monges, Benedito, pálido e de olhos flamejantes, acusava-o de usurpador e sacrílego, por exercer um cargo só cabível a professos juramentados. Aplausos e vitupérios irrompiam a cada passo, interrompendo o orador; muitos capuzes entreabertos, ou levantados, deixavam entrever semblantes ferozes e mãos nervosas brandindo punhais. O conde, sereno, braços cruzados, permanecia imóvel... Uma vez saciado da contemplação de suas riquezas, meu pai trancava a sete chaves todos os cofres, exceto dois, que continham dinheiro amoedado. Isso feito, plantávamo-nos cada qual diante de um cofre e contávamos e recontávamos as moedas, empilhando-as. Depois, tudo fechado e revistado, subíamos exaustos. Insensivelmente, sem querer, eu ia me prendendo àqueles tesouros, sentido-me capaz de os defender à custa da própria vida. Mas contar eternamente aquele frio metal não me satisfazia, e me lembrava das histórias de Sibila, dos torneios e feitos de armas presenciados e estimulados por nobres e belas damas... Aquela frescura, aquele aroma e a espessura da mata me inebriavam a mim, prisioneiro do berço. Comecei então a divagar e pensar que a liberdade jamais me poderia aparecer mais bela do que naquele momento. Tendo assim repousado um pouco, caminhei cauteloso e a cada passo descortinava novos encantos. Ao derredor, cresciam flores e frutos que eu recolhia, frutos vermelhos e cheirosos, que me sabiam a novidade. E dizer que eram simples morangos, que eu não conhecia! Assim, entretido, com essa colheita, não tardou tivesse um brusco sobressalto, ouvindo longínquo latido de cães e relinchar de cavalos, seguido de toques de buzina. Pouco a pouco, o alarido se foi aproximando e, de um carreiro que me passara despercebido, desembarcou toda uma cavalgada de cavaleiros e damas ricamente trajados. Rente a mim, o esquadrão multicor atravessou a clareira e tornou a mergulhar na floresta. Era uma caçada! Senti-me estranhamente amargurado, despeitado. Atirei-me na relva, mergulhei a face nas mãos. Por que não poderia, filho de poderoso fidalgo, tomar parte naqueles prazeres? Examinei meus trajes surrados, escolhidos no guarda-roupa dos ancestrais, e conquanto não tivesse a menor noção da moda, não deixei de notar o seu exotismo, rico talvez no seu tempo, mas ridículo em relação com o dos cavaleiros que passaram... Calmor acendeu três tochas e, aclarado por elas pus-me a examinar o ambiente sinistro. Reconheci desde logo que o fundo desse abismo era muito mais vasto do que se poderia supor. De um lado, corria sereno o riacho e por todo o solo arenoso viam-se ossos espalhados. Bem no centro havia uma pedra redonda e maciça, semelhante às de moinho, e nas beiradas dessa pedra, treze caveiras simetricamente dispostas. Quatro grandes pilhas de zimbro, adrede preparadas, foram acesas. De repente um calafrio me fez estremecer e recuar sobressaltado: é que assentado ao redor da pedra, silenciosos, imóveis, estavam precisamente treze lobos, cujos olhos coruscavam como carvões em brasa. De vez em quando Calmor lhes atirava nacos de carne tirados de um saco e que verifiquei, com grande surpresa, serem restos humanos. As feras abocanhavam cada qual o seu quinhão, sem se moverem do lugar em que estavam..."