Amâncio Siqueira 06/01/2017
O Chamado do Incognoscível
“Only poetry or madness could do justice to the noises heard by Legrasse’s men as they ploughed on through the black morass toward the red glare and muffled tom-toms. There are vocal qualities peculiar to men, and vocal qualities peculiar to beasts; and it is terrible to hear the one when the source should yield the other.”
(Somente a poesia ou a loucura poderiam fazer jus aos barulhos ouvidos pelos homens de Legrasse enquanto cortavam caminho através do pântano escuro até o brilho vermelho e o abafado batuque. Existem características vocais peculiares ao homem, e características vocais peculiares aos animais; e é terrível ouvir um som vindo de uma fonte quando deveria partir de outra)
H. P. Lovecraft, The Call of Cthulhu
Apesar de dever muito do meu hábito de leitura aos quadrinhos de Conan escritos por Roy Thomas e desenhados por John Buscema, que deram grande visibilidade à Era Hiboriana, imaginada por Robert E. Howard, quase não tive acesso às obras publicadas na Weird Tales, além das próprias criações de Howard. Para preencher mais essa lacuna de minhas leituras, nada melhor que recorrer à imaginação igualmente fantástica de outro Howard, o Lovecraft.
Antes de falar do livro, devo dizer que gostei tanto que procurei uma edição dos Mythos, reunião de vários autores que com seus contos buscam ampliar o universo dos “Great Old Ones” (Grandes Antigos). Cthulhu é um desses Grandes, deuses que se lançaram através do cosmo ainda jovem e trouxeram caos para os planetas em que habitaram, até que “morreram”. O conto em que Lovecraft apresenta essa ideia fala sobre o chamado daquele que veio parar na Terra, ainda antes de existir vida, interferindo no destino do planeta, e de investigações acerca de um culto anterior à história, espalhado por todo o globo, que busca a “ressurreição” de Cthulhu.
Todo o conto mexe com o terror mais genuíno: o terror do incognoscível. O primeiro contato que temos com a besta, digo, o deus, é uma pequena estátua de barro com formas parcamente discerníveis que lembram um humanoide com asas de dragão e cabeça de polvo. Sendo essas formas de “vida” compostas de formas de energia e matéria desconhecidas, a disformidade é algo intrínseco à sua “forma”. O narrador, Francis Wayland Thurston é o sobrinho-neto do professor de línguas semíticas George Gammell Angell, que morreu de forma inexplicável (embora já bastante idoso) enquanto pesquisava a respeito do culto, que tem sua existência evidenciada por um inspetor de polícia, Legrasse, ao relatar descobertas que realizou em ocorrências policiais a um grupo de acadêmicos durante um simpósio. O culto, porém, logo deixa de ser relevante, quando vários acontecimentos insólitos ao redor do globo, ocorridos numa mesma época, mostram que algo muito terrível despertou.
O próprio nome Cthulhu é uma tentativa de vocalizar algo que não pode ser dito por linguagens humanas. Como diz o narrador: “We live on a placid island of ignorance in the midst of black seas of infinity, and it was not meant that we should voyage far. The sciences, each straining in its own direction, have hitherto harmed us little; but someday the piecing together of dissociated knowledge will open up such terrifying vistas of reality, that we shall either go mad from the revelation or flee from the deadly light into the peace and safety of a new dark age.” (Vivemos numa plácida ilha de ignorância em meio a escuros mares de infinitude, e não havia meios de sair dali. As ciências, cada uma espalhando-se em sua própria direção, têm amiúde nos iluminado; mas um dia a junção de conhecimentos dissociados nos desvendará uma vista tão terrível da realidade, que ou ficaremos ensandecidos com a revelação ou fugiremos dessa luz mortal direto para a paz e a segurança de uma nova idade das trevas.) A ilha de Cthulhu, com sua geometria não euclidiana, é o cume do estranhamento que a narrativa causa.
Por meio de capítulos que passeiam entre estudos científicos, relatos policiais e narrativas de aventurescas viagens marinhas, Lovecraft começa a extrair do barro a forma de seus contos, tal qual ele declarou numa carta de 1927: “Todos os meus contos são baseados na premissa fundamental de que as leis, interesses e emoções que os seres humanos compartilham não têm validade ou significado no vasto cosmos ao redor.”
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