Ronnie K. 22/04/2010
Absolutamente simples e genial.
Eddie Lynn um dia foi um talentoso e requisitado pianista clássico; porém uma grande tragédia pessoal o fez abandonar o prazer de viver, tornando-o autodestrutivo e fazendo-o mergulhar cada fez mais no abismo social. No fim das contas, o encontraremos trabalhando de pianista numa espelunca ensebada de terceira categoria em troca de uns míseros trocados. Para piorar, outra fatalidade está prestes a cair sobre seus ombros: seus dois irmãos, legítimos foras-da-lei, após um golpe de traição na organização criminosa a que pertenciam, são perseguidos por uma dupla de pistoleiros para o acerto de contas e, um tanto involuntariamente, acabam arrastando o pobre Eddie para o centro dessa confusão.
"Atire no pianista", como é comum no universo literário do escritor David Goodis, retrata brilhantemente certo tipo de marginalidade: pessoas decadentes e desiludidas, então entregues geralmente à bebida e ao puro desalento, vivendo no automatismo ou na prática de crimes. A linguagem empregada é absolutamente sem contra-indicações! Prosa enxuta, límpida e irresistível, sem no entanto abrir mão da acuidade psicológica e das sutilezas. Coisa que, como se sabe, não é muito comum. O que torna a leitura desse romance, não somente ágil e envolvente, mas altamente recomendável.
Talvez o maior mérito desse despretencioso romance seja o ponto de vista adotado em sua narração. A ação não é centrada nos irmãos criminosos de Eddie, o decadente pianista. Na verdade eles pouco aparecem. Muito menos os pistoleiros que os perseguem. Prova da sutileza e extrema criativade empregados pelo autor, toda a história é vista pelos olhos de Eddie. Então o que temos? Temos que as ações ocorrem tangencialmente: sobressai um clima de suspense, de ameaças, de tensão, de medo. Eddie sabe que está sendo vigiado, mas não sabe extamente por quê. Há retalhos de acorrências, como se Eddie entrasse dentro de uma tela de filme de ação e involuntariamente fizesse parte de algumas cenas. A sensacional sequência final é prova disso: exímia e perfeita demonstração do "poder de fogo" do escritor e toda sua habilidade de fundir cenas de ação com monólogo interior, além de nos brindar com um epílogo preciso e emocionante. Em suma: uma obra-prima forjada nas sarjetas.
TRECHO:
"Havia também o piano.
'O mesmo piano', pensou Eddie, olhando para o instrumento em ruínas, que surgia como um fantasma naquela luz amarelada. O teclado estragado pelo tempo parecia uma exposição de dentes cariados, com o marfim de várias teclas arrancado. Eddie ficou olhando-o, sem perceber que Clifton o observava. Aproximou-se do teclado e estendeu a mão para tocá-lo. Qualquer coisa puxou sua mão, ela se enfiou por baixo do sobretudo e no bolso do paletó. O rapaz sentiu o peso da arma.
'E daí'?, perguntou-se, voltando ao presente, aos fatos reais. 'Tiraram-lhe o piano e lhe deram um revólver. Você queria dedicar-se à música mas, devido ao rumo que as coisas tomaram, esse é um assunto encerrado. Daqui por diante só existe isso: o revólver.'"