Luis 09/06/2012
Das virtudes e dos pecados do Jornalismo da Globo
Há alguns anos, José Luis Laranjo, meu antigo professor de Técnicas de Reportagem, revelava uma curiosidade a respeito da influência da atração jornalística mais importante da Rede Globo sobre os demais veículos de informação : “ Ninguém fecha jornal no Brasil antes do término do Jornal Nacional. Às 20:30 todos param o que estão fazendo para assistir o noticiário, e , se por caso algum assunto importante exibido não constava da edição do dia seguinte, nós dávamos um jeito de incluí-lo”.
Exagerado ou não, o depoimento dá uma pequena ideia da força que o principal produto da Central Globo de Jornalismo, e programa de maior audiência e faturamento publicitário do país, adquiriu ao longo de seus quase 43 anos de veiculação.
Principal iniciativa que possibilitou a formação da Rede Globo, e consequentemente o domínio do mercado televisivo que a emissora desfrutaria a partir de então, revisitar o desenvolvimento histórico do JN é de certa forma entender (e não necessariamente concordar) a lógica de estruturação da Central Globo de Jornalismo ao longo dos anos, resumidamente é a isso que se propõe “Jornal Nacional : A notícia faz história”.
Em seu surgimento, o canal 04 carioca, inaugurado em 26/04/1965, praticava um telejornalismo não muito diferente do que se fazia na época, fortemente regional, com um leque limitado de imagens e seguindo o modelo consagrado do “Repórter Esso”, até então o noticiário de maior prestígio do país tanto em sua versão radiofônica quanto televisiva.
Sob a direção de Mauro Salles foram criados o “Teleglobo” e o “Ultranotícias”, em uma estrutura ainda incipiente e utilizando muito material produzido por agências.
No ano seguinte, Walter Clark assume como Diretor Geral e traz Armando Nogueira, já um nome consagrado na imprensa esportiva carioca, para reorganizar o departamento de jornalismo. Logo no início do ano, a opção por focar no regional e na prestação de serviços (tendência que mais tarde seria retomada nos chamados telejornais de praças) daria o seu primeiro fruto com o sucesso da cobertura das enchentes que assolaram a cidade em 1966.
Com o impulso de popularidade e credibilidade junto à opinião pública, Armando começa a montar a estrutura que desembocaria na CGJ, culminando com o lançamento do JN, em 01/09/1969.
No início desse processo, produção era calcada no noticiário internacional, garças ao contrato com várias agências de notícias e driblando a censura para assuntos nacionais. Embora longe de ser considerada uma inimiga do regime, até pela posição conservadora de Roberto Marinho, a Globo também sofria com os cortes e limitações impostas ao conteúdo de seus produtos jornalísticos pela turma de censores de Brasília.
A partir de 1973, com a entrada de Alice Maria no núcleo duro do comando da CGJ, toda a estética da produção das matérias passa a se alinhar ao chamado “Padrão Globo de Qualidade” que já norteava boa parte da linha de shows e a teledramaturgia da emissora. Figurino, linguajar e gestual passaram a ser tão importantes quanto a apuração dos fatos, em uma tendência que se espalharia por outros telejornais concorrentes.
Mas o “filé mingon” da obra é a exposição dos pecados que durante muito tempo estigmatizaram a Vênus Platinada.
A primeira grande crise da CGJ foi em 1982, durante o estouro do chamado escândalo da Próconsult, uma empresa contratada pelo TER carioca para contabilizar os votos da primeira grande eleição direta (Governadores, Deputados, Senadores e Vereadores) do período ditatorial. A Rede Globo não montou um esquema próprio de contabilização, compartilhando o que havia sido elaborado para o Jornal O Globo.
Em um episódio até hoje não totalmente esclarecido, a Proconsult fazia a contabilização de forma extremamente lenta, e divulgava os votos de forma desigual, priorizando as cidades do interior e dando a impressão de que Moreira Franco, o candidato do PDS, braço político da ditadura, estava em ampla vantagem.
No entanto, poucos meses antes, o IBOPE já apontava de forma clara a tendência de que Leonel Brizola seria o vitorioso da corrida ao Palácio Guanabara. Diante dessa contradição, Homero Sanchez, responsável pelo setor de pesquisas da Globo e convencido doa certo ad pesquisa da IBOPE, alertou Leonel Brizola da possibilidade de uma fraude eleitoral. O futuro Governador foi à imprensa e denunciou a história, jogando dúvidas sobre a apuração oficial. A grande questão é que a apuração do Jornal O Globo, utilizada pela TV, era alimentada pelos dados oficiais, daí a Globo divulgar que Moreira estava à frente, quando na verdade , Brizola já estava eleito.
O caso levou a uma eterna oposição entre Brizola e a principal emissora do país, que culminou inclusive na retirada da emissora da transmissão do carnaval de 1984, o primeiro do Sambódromo.
Depois disso, a Globo mudou totalmente a forma de divulgação de apurações, levando em conta a proporcionalidade dos votos apurados e as projeções das pesquisas de boca de urna.
Dois anos mais tarde, uma nova e grave fissura abalaria ainda mais a imagem da CGJ, dessa vez com impacto direto na chamada opinião pública. Em fins de 1983, ganha corpo a mobilização popular pela aprovação da emenda Dante de Oliveira, que passou à história como a Campanha das Diretas Já. Boa parte da imprensa aderiu de forma imediata ao movimento, registrando de forma ampla e incentivando as manifestações. Por determinação da Direção Geral, a Globo não dava qualquer tipo de ênfase à cobertura, restringindo-a aos noticiários locais, ou seja, a campanha pelas Diretas estava fora do JN.
A coisa chegou ao auge no início de 84, com a convocação de um grande comício na Praça da Sé, que se tornou um marco alavancando de vez a campanha. Com a magnitude dos acontecimentos, não havia mais a possibilidade de se omitir e foi que a emissora , em decisão hoje impensável em termos jornalísticos, cometeu um dos maiores erros da história do telejornalismo : na escalada de notícias daquele dia, Cid Moreira leu em rede nacional que milhares de pessoas estiveram reunidas na Praça da Sé para comemorar o aniversário da cidade de São Paulo, o que, se não era de todo mentira (a manifestação foi marcada para o feriado de 25 de janeiro) estava muito longe de corresponder à verdade, embora na própria reportagem, como foi enfatizado pelo jornalista Ernesto Paglia, um dos destacados para cobrir o comício, seja clara a correspondência entre a massa de paulistanos reunidos e objetivo real daquele ato.
Essa “insensibilidade” da emissora líder quanto aos anseios populares do momento, deram origem a um mal estar histórico entre os setores mais progressistas e o canal 04 carioca, não por acaso, foi cunhado um slogan que volta e meia é reutilizado (“ O povo não é bobo, abaixo a rede Globo”). Também merecem registro as ocorrências de alguns atos violentos contra profissionais da empresa, que, para a população de uma maneira geral encarnavam a posição conservadora de seus patrões.
O terceiro e mais grave episódio de abalo da credibilidade do jornalismo global aconteceria em 1989, durante as eleições presidenciais tão ansiosamente aguardadas há quase trinta anos.
O momento histórico levou a uma espécie de radicalização, em que quase todos os partidos lançaram candidaturas próprias na certeza de encarnarem o melhor projeto político para os tempos tumultuados da pós Nova República. Havia candidatos para todos os gostos : de viúvos da Ditadura (Aureliano Chaves) a representantes da direita light (Guilherme Afif Domingos), de ruralistas extremados (Ronaldo Caiado) a representantes do novo e do velho trabalhismo (Lula e Brizola), de centro esquerdistas renovados (Mário Covas e Roberto Freire) a bizarrices circenses (Marronzinho, Enéas e Silvio Santos).
Diante de fauna tão variada, um candidato supostamente desvinculado desses estereótipos, filiado a um “novo” partido político, que espertamente carregava a palavra “renovação” no nome, mas com DNA inegavelmente conservador e elitizado, acabou angariando a natural simpatia dos chamados grande veículos. O canal da família Marinho não foi exceção.
O Ex-governador de Alagoas, Fernando Collor de Mello liderou o pleito e nessa condição passou ao segundo turno para a disputa final com Lula, marcada para o dia 17 de dezembro, um domingo.
Poucos dias antes, na quinta feira, 14 de dezembro, houve o segundo debate (o primeiro havia sido no dia 3) transmitido em pool pelas TV´s Globo, Manchete, Bandeirantes e SBT. Diante de um empate técnico nas pesquisas ( 47 a 46 %, com ligeira vantagem para Collor), o debate se revestia de uma aura própria de tensão. Collor aparentando calma e portando uma pasta de conteúdo desconhecido, toma uma postura agressiva, colocando Lula na defensiva a maior parte do tempo. Embora na prática nada muito relevante tenha sido dito ou revelado durante as mais de 2 horas de debate, a impressão final de um Collor firme e seguro contra um Lula nervoso e assustado foi a moldura que fixou o quadro histórico.
No dia seguinte, logo cedo, a editoria de política em São Paulo (onde ficava o comando da rede na parte da manhã) fez uma edição do debate equilibrada, alternando bons e maus momentos de ambos os candidatos, sem demonstrações de pendor para qualquer lado, no entanto, logo após a exibição dessa edição, no Jornal Hoje, houve uma até o momento não esclarecida ordem para que a edição fosse refeita a fim de ser exibida no Jornal Nacional e o resultado foi francamente favorável a Fernando Collor.
O livro coloca o dedo na ferida ao coletar depoimentos contundentes dos principais dirigentes da emissora contra ou a favor da polêmica edição. Embora não se possa chegar à uma conclusão clara de quem foi a responsável pela edição, a veemência de Armando Nogueira ao enxergar no episódio uma traição por parte de seus subordinados bancada pela cúpula (Armando comungava da opinião de que a segunda edição foi francamente pretensiosa) e a sua quase imediata demissão, após 24 anos de serviços prestados, nos levam a crer que, de fato, o alto comando da emissora, a despeito dos conceitos universais de jornalismo, “colloriu” a Venûs Platinada.
A partir da saída de Armando em 1990 (junto com Alice Maria, que voltaria mais tarde para estruturar a Globo News), a CGJ passa por mudanças sucessivas com impacto direto no seu principal produto, culminando com a adoção de jornalistas na bancada em substituição aos locutores.
Embora muitas vezes contestada, a Central Globo de Jornalismo, ilustrada pelo seu carro chefe, o JN, criou um paradigma difícil de ser ignorado por qualquer profissional que milite na labuta diária das hard News, muitas deles criados sob o impacto da tradicional vinheta que, há mais de 40 anos, por volta das 8 da noite, adentra os lares brasileiros.