spoiler visualizarJoão F. 11/06/2024
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Em 1866, Dostoiévski publicou no jornal literário as partes constituintes do que viria a ser o seu grande romance filosófico, ?Crime e Castigo". Na data, o clima na Rússia era de perda coletiva de sentido, em meio à divisão da Igreja, culminando em um homem, também, dividido. Isso é refletido no próprio protagonista do romance, cujo nome contém ?Raskolnik?, alguém esquizóide, dissidente, em uma sociedade dividida, assim como os jovens intelectuais russos. O seu amigo próximo, Razumíkhin, viria a comentar sobre o mesmo: ?Dois caracteres opostos mudam nele entre si.?
Raskólnikov, em seu contexto de pobreza e miséria, estipula uma espécie de ideologia pessoal, a qual rejeita o ordinário, crendo que o homem extraordinário?idealizado na figura de Napoleão?é aquele capaz de passar por cima da lei comum em advento da sociedade. Repete-se aqui a atitude paradoxal de Ródia, que, apesar de acreditar que o crime fosse a sua porta de entrada ao extraordinário (e, portanto, superior), acaba submetendo-se ao sentimento de culpa e covardia após assassinar a velha ?inútil?.
A vidraça que nos dá vislumbre ao inconsciente de Ródia são, em grande parte, os seus sonhos. Em um deles, aparece uma égua onírica, acometida por abuso de seus donos, que representa a velha Ivanovna. A criança simboliza o lado humanitário de Raskólnikov, inocente, puro, idealizado, reprimido e perto do inconsciente. O infante, logo, corre em prantos para abraçar a égua ferida. Por outro lado, Mikolka constela o seu lado reflexivo: frio, inclemente, que assassina os ?cavalos? inúteis da sociedade e racionaliza o crime como Napoleão. Está, portanto, mais conectado com o córtex consciente de Ródia, enquanto que o seu inconsciente irá, sutil, por intermédio dos sonhos, indicar a ele esse culposo assalto à empatia, e que, afinal, ele não era homem extraordinário nenhum.
Esse lado humano reprimido, sincero, de Raskólnikov transborda através do livro não apenas de forma onírica, mas também em seu comportamento. Em diversas passagens, Dostoiévski retrata o elevado sentimento social do herói; os eventos pelos quais o homem comum passa com indiferença absoluta produzem uma impressão indelével em Ródia, que emanam da realidade concreta. ?Por um lado, as suas declarações e confissões, até o epílogo, provam que ele não revoga as suas ideias, a sua teoria, as suas conclusões lógicas. Por outro, algo mais forte do que consciência e vontade, uma espécie de instinto, o compele ao autodesmascarar.? (O Estilo de Dostoiévski, Nikolai Tchirkóv.) Esse ideal é prontamente reforçado em sua atração por Sônia, mulher que, segundo ele, representava os grandes sofrimentos de toda a humanidade.
Graças ao seu quarto e último sonho, com os insetos, Ródia finalmente percebe que, se cada ser humano seguisse o seu próprio raciocínio sem culpa, eles acabariam por balançar os seus machados uns contra os outros até o dia do juízo final, pois ignoraram sua humanidade comum e seus valores estabelecidos. Portanto, não seria exagero dizer que ?Crime e Castigo? conta a história de um homem que quis alcançar o mais puro racionalismo, mas que inevitavelmente sucumbiu ao seu sentimental inconsciente.