Thalia58 15/06/2024
Obrigatório para brasileiros. Força, resiliência, ancestralidade
Um defeito de cor
Este é um livro que deveria ser lido por todos os brasileiros, em especial as mulheres pelo menos uma vez na vida, porque aprendemos sobre a nossa história de uma perspectiva diferente. Retrata a história de uma mulher africana chamada Kehinde, capturada em África quando criança na cidade de Uidá, escravizada e trazida ao Brasil, em São Salvador.
É um livro em primeira pessoa em que a Kehinde conta sua história de aproximadamente um século em forma de carta para um filho perdido. Não vou me adentrar muito na sinopse, até porque não conseguiria resumir a grandeza dessa história, vou apenas comentar alguns acontecimentos que achei mais importantes e percepções que tive durante a leitura.
A Kehinde foi inspirada na mãe de Luís Gama, a Luísa Mahim, participante e uma das líderes da revolta dos malês (os negros muçulmanos), ela não possui registros históricos, apenas dois poemas de seu filho e um trecho de uma carta que ele escreve para um amigo. Mas não foi a única inspiração, já que não existem registros históricos sobre essa figura, a autora se inspira em pelo menos 400 outras mulheres da época, o que torna a personagem ainda mais interessante.
Se tornou uma das minhas personagens favoritas de todos os tempos, porque é uma personagem que não se deixa abater pelas adversidades, decidida, independente (feminista), que se instruiu, que cometeu erros, claro, como qualquer outra pessoa e conquistou tantas coisas que geralmente é difícil imaginar quando a gente lê ou estuda sobre esse período no Brasil, mas que na verdade é bem verossímil, levando em conta que era basicamente as mulheres que movimentavam o comércio de rua nas cidades.
Apesar de ter muitos acontecimentos revoltantes no livro, ele não é definido apenas pelas atrocidades causadas pelos colonizadores, o que acho mais marcante na história é a força de um povo que apesar de tudo isso, conseguiu sobreviver, deixar seu legado, cultura e transformar toda uma sociedade. Principalmente as mulheres que ainda sofriam com a questão do machismo.
Lendo este livro, você se dá conta de como a história negra é apagada e nas escolas, por exemplo, há uma importância maior para a história da Europa, por exemplo. Foram tantas coisas interessantes que aprendei e fiquei curiosa em saber mais lendo esse livro, que nem dá pra listar. Uma delas inclusive foi a própria revolta dos malês, que se estudei na escola foi brevemente porque não lembrava.
Geralmente é ensinado a ver a África como uma coisa só, e no livro fica bem-marcado a quantidade de povos e culturas diferentes que lá existem, inclusive sendo utilizados pelos colonizadores para evitar que as pessoas escravizadas se rebelassem colocando juntas pessoas que tinham línguas diferentes, de tribos diferentes e até mesmo rivais.
Vale mencionar também que durante a leitura, muitas situações pareciam ser atuais, o que é muito triste de perceber porque ainda vivemos praticamente do mesmo jeito que vivíamos 200 anos atrás, apesar de ter conseguido várias conquistas, a estrutura é basicamente a mesma.
O livro traz a diversidade de religiões que foram trazidas, incorporadas e mescladas com outras religiões que já existiam aqui ou que foram adaptadas para que o povo conseguisse cultuar suas divindades sem serem punidos e achei fascinante a explicação referente às religiões africanas. E é uma pena que ainda hoje, as religiões de matriz africana ainda recebem tanto ódio e preconceito. Outra característica que gostei muito na Kehinde, foi o fato dela não ter preconceito com nenhuma religião e entender que cada um deveria expressar sua fé da forma que quisesse, considerando as religiões como primas.
O aspecto político também foi bem trabalhado, já que a própria protagonista era muito interessada nessas questões, e é interessante ver como todos os países envolvidos no tráfico de escravos se beneficiaram deles, até mesmo a Inglaterra que era contra o tráfico em um certo momento.
Achei bacana que a autora incorporou várias personalidades históricas importantes da época no livro, inclusive referências a outros livros. A questão dos nomes também é interessante, já que pra tirar a identidade das pessoas que estavam sendo escravizadas, elas eram batizadas e ganhavam um nome português/brasileiro e eram proibidos de falar em suas línguas nativas. Mas me chamou mais atenção os nomes dos abikus, que são crianças que tinham tratos para voltar ao Orum antes das outras pessoas e morrem mais cedo.
O que acontecia com as pessoas que retornavam também é um tema interessante de ler , como muitas pessoas conseguiram voltar para África, mas não encontravam as coisas do jeito que tinham deixado e acabavam criando o seu próprio modo de vida assimilando a cultura e modos que tinham aprendido no Brasil. Gostei da referência às Burrinhas, porque participo aqui também na cidade onde moro atualmente.
Um tema bem recorrente e importante para a Kehinde foi o que hoje chamamos de empreendedorismo, e lendo sobre isso numa história que acontece há praticamente 200 anos mostra o quanto isso está ligado ao capitalismo e a ideia de que isso é quase um conto de fadas pra quem é pobre. Claro que existem aqueles que se sobressaem, mas a maioria vive em situações análogas à escravidão, que faz parte desse sistema.
A história da rainha Agontimé também é mencionada e era outra história que não sabia e tive que pesquisar mais durante a leitura. Vale a pena conhecer.
A escrita é muito bonita e fluida, tem muitos personagens, não dá pra lembrar de todos se você tem uma memória como a minha, mas isso só acrescenta na riqueza desse livro. Sem dúvida, se tornou um dos meus livros favoritos da vida e com certeza farei uma releitura em algum momento. Recomendo fortemente!