Sal e pimenta do reino
05/03/2021O bordado da memória de alguém?O Risco do Bordado?, obra escrita por Autran Dourado e publicada em 1970, é narrado por João da Fonseca Ribeiro, que conta suas memórias em sua cidade natal, Duas Pontes, em Minas Gerais.
No livro, João conta histórias que vivenciou durante o crescimento, à medida que se lembra dos acontecimentos. Dessa forma, começa o livro com uma memória vívida sobre sexualidade e seus primeiros contatos com ela. Primeiro, ele conta sua expectativa sobre Teresinha Virado, uma mulher que trabalhava no cabaré de Duas Pontes e pela qual João fantasiava. Depois, ele relata seu encontro real com Teresinha, o conflito entre a expectativa e a realidade e as sensações que experienciou.
Assim, o livro segue como num torpor. A partir das memórias afetivas de João, Dourado utiliza sentimentos e descrições de cheiros, sabores, e, com sinestesia, fazem a memória ser do próprio leitor. As descrições, que não aparecem em ordem cronológica, possuem breves conexões umas com as outras, da mesma forma que funciona o cérebro quando estamos experienciando uma situação marcante.
O ritmo de cada capítulo possui entonação familiar, bastante característica de Minas Gerais. No entanto, eles contêm histórias intensas, que começam com situações cotidianas, e depois passam a se intensificar, até chegar ao momento que torna aquela memória um aprendizado, um peso. Isso porque cada uma delas possui dor, vergonha, desejo, curiosidade e outros tantos sentimentos profundos que são engatilhados à medida que ocorrem os cenários.
Além disso, os próprios interesses que João tem e o motivo pelos quais as memórias estão afixadas em sua mente são narradas de forma a causar estranheza, mas também empatia. Por conseguinte, a leitura é muito psicodélica, pois somos levados a entrar no espaço psicológico de João. O livro causa-nos sensações nítidas, pois passamos tanto pelas vivências de João quanto por seus processos de absorção das situações, além de suas fantasias.
Nas descrições, percebe-se um cuidado na construção da história, como acelerações e desacelerações na narração, para causar claramente tais sensações no leitor.
Dessa forma, Autran Dourado consegue retratar o psicológico de João e seu desenvolvimento, correlacionando suas questões internas com os ambientes por onde passou, as pessoas com quem conviveu e sua cultura. Ele faz isso meticulosamente, o que dá ao livro um tom belo e febril.
No capítulo V, o avô de João, Tomé, conta a história de sua própria infância e de sua relação com o pai, Zé Mariano, e a mãe. No início do conto, começamos a sentir que a mãe é extremamente controladora e maldosa com o pai, enquanto ele sofre sob seus cuidados, pois não tem liberdade. Um dia, o pai decide fugir de casa e ir morar com seu outro filho, seu Teodomiro, que o dá bastante liberdade. Zé Mariano, então, parece ficar mais feliz inicialmente, mas depois ele deixa de tomar banho e passa a não ter nenhum asseio.
Tomé, agoniado com o cheiro e a sujeira do pai, tem a ideia de empurrá-lo no rio. Após o feito, Zé Mariano se isola completamente, se trancando em uma casa. O capítulo termina com ?Só depois é que ficaram sabendo. Quando um dia alguém veio correndo dizer que estava assim de urubu em cima da casinha do pai?, anunciando a morte de Zé.
Nesse capítulo, há inúmeras mudanças de perspectiva, pois inicialmente somos levados a culpar a mãe, que é uma mulher forte, que se impõe. No final, nos questionamos se talvez sua necessidade de controle fosse voltada, justamente, para garantir o cuidado de Zé Mariano, mesmo que ele não fosse tão feliz enquanto estava com ela. Quem sabe, se vovô Tomé não tivesse ajudado o pai a sair de casa e se voltado contra a vontade da mãe, o pai não teria morrido dessa forma. No entanto, talvez ele não fosse ser feliz nunca mais.
Em vários momentos somos levados a questionar alguns preconceitos, enquanto em outros, eles parecem estar entranhados em João. Então, há machismo e racismo. Entretanto, a retratação deles complementam o aspecto cultural do interior de Minas.
Por fim, é um livro emocionante. Ele descreve muito bem as dores das memórias, os momentos mais fortes de choque e de aprendizados e as quebras de expectativas que acontecem no cotidiano.