Breno Melo 28/09/2011
Inocência
Inocência, a personagem-título, é prometida a Manecão. Antes que o casamento aconteça, Inocência recebe os cuidados de Cirino, um falso médico. A história de amor que nasce entre a doente e o falso doutor, impossível e cercada de temores, é o centro deste romance.
A trama se passa uns 150 anos atrás, na atual cidade de Inocência, Mato Grosso do Sul. Quando dizemos que Inocência foi prometida em casamento, queremos dizer, obviamente, que temos aí uma família patriarcal típica da época e lugar, em que o pai faz casar a filha com quem ele escolhe. A família estaria completa se não fosse pela mãe de Inocência, já falecida, e pelo irmão, ausente.
Pereira, pai de Inocência, dá acolhida a Cirino, não só em nome da boa hospitalidade, mas também porque desejava curar a filha, que sofria de febres. Cirino, embora não fosse médico, tinha conhecimentos práticos de Medicina que lhe permitiram curar a menina. E foi assim que ele se aproximou de Inocência.
Para que tenhamos uma ideia melhor sobre os costumes dos sertanejos do Mato Grosso na época, vejamos o cuidado de Pereira em preservar a honra da filha:
- "Agora, prosseguiu Pereira com certo vexame (...), peço-lhe uma coisa: veja só a doente e não olhe para 'Nocência' (...)."
- "Sr. Pereira, replicou Cirino com calma (...), como médico, estou há muito tempo acostumado a lidar com famílias e a respeitá-las (...)."
Outro viajante, também acolhido por Pereira em sua fazendola, é Meyer. Este último viajante (o único personagem estrangeiro do romance) é um alemão que vem ao Brasil para a coleta de insetos que não existem em sua terra, onde possuem valor comercial. Ele chega à fazendola acompanhado de um assistente, tão prestativo como tagarela e inoportuno. Não tinha o menor desconfiômetro... Meyer e seu assistente não deixam de nos lembrar Dom Quixote e Sancho Pança (ou São Chupança, como alguns dizem de brincadeira), especialmente devido ao burrinho.
Meyer, com hábitos diferentes, elogia Inocência sem que tenha segundas intenções. Pereira, entretanto, entende os elogios como ofensa, porque crê que Meyer está interessado em Inocência. Meyer, por sua vez, não percebe que acendeu certos ódios em Pereira e volta a elogiá-la de vez em quando, julgando que isso seja do agrado de Pereira.
- "Além do mais, sua filha é muito bonita, muito bonita, e parece boa deveras... Há de ter umas cores tão lindas, que eu daria tudo para vê-la com saúde... Que moça!... Muito bela!"
(...)
- "O senhor não quer retirar-se? interrompeu Pereira com modo áspero."
Já Cirino, que se ardia de amores pela menina e conhecedor dos costumes da terra, fazia de tudo para dissimular o que sentia. Mas, como eu disse acima, ele foi correspondido por Inocência. A cena da janela, em que ambos conversam com medo de que possam ser surpreendidos, talvez seja a mais bela e interessante. A cena não deixa de lembrar a do balcão em Romeu e Julieta, especialmente se recordamos que o romance Inocência é tido como o Romeu e Julieta brasileiro ou sertanejo.
Ele é curto, seu vocabulário é pequeno e, embora de época, é perfeitamente compreensível para a maioria de nós. O regionalismo "mapiar", que aparece na obra, significa conversar.
De Meyer, ainda deveríamos falar algo. Ao menos na Literatura, Taunay era um antigermanista e tinha o costume de criar personagens alemães cômicos ou ridículos. É fácil notar certa implicância do narrador ao falar de Meyer, de modo que já não poderíamos chamar o narrador de imparcial.
- "Sim, exclamou Meyer com desespero, formiga de pau podre!... 'mein Gott'... Eu rasgo a roupa... eu pulo... eu gemo... fico nu como quando minha mãe me botou no mundo!... Horrível formiga do diabo!... Faz calombo em todo o meu corpo... Muita dor."
Seja como for, se não chegamos a ter um romance realista, tampouco vemos um romance romântico. É um meio-termo que tende ao Romantismo, especialmente com respeito à trama principal, ultra-romântica.
Sobre o auge da história, digamos que Manecão talvez já não aceite Inocência como esposa, e que Pereira e Manecão descobrem a história de amor de Inocência e Cirino quando ambos os viajantes, Cirino e Meyer, já haviam deixado a fazendola, cada um seguindo seu rumo. O primeiro impulso de Pereira, disposto a lavar a honra com sangue, é ir atrás de Meyer, mas o anão (eu ainda não tinha falado do anão mudo? oh! me perdoem) conta através de gestos o que realmente se passou. A raiva de Pereira se torna ainda maior, porque em Cirino ele confiava e, em Meyer, não.
Inocência e Cirino, entretanto, ainda têm uma chance. Cirino procura o padrinho de Inocência com a esperança de que este possa intervir a favor dos dois, do mocinho e da mocinha da história. Mas o padrinho, outro defensor da honra da menina, talvez se volte contra Cirino também.
Não digo mais. Daqui por diante é o desfecho da trama e, ainda que tudo possa parecer previsível para o leitor, lembremos que a maneira como uma história é contada pode valer mais que a trama em si.
Sobre as melhores partes do romance, além da cena da janela e desta em que Cirino busca a ajuda do padrinho da mocinha, o final também é bastante interessante, principalmente a nova espécie de borboleta apresentada por Meyer na Europa e o nome científico dela. Outras cenas até melhores são a do leproso e aquela em que Cirino se vê rodeado pelos moradores da vila de Sant'Ana.
Eu recomendo este romance para quem gosta de histórias de época (especialmente aquelas escritas por autores da época, o que, certamente, faz toda a diferença); para quem já leu Romeu e Julieta e gostou (ainda que Inocência, de modo algum, suporte comparação com esta peça de Shakespeare em matéria de qualidade); para quem gosta de obras com características do Romantismo brasileiro; e especialmente para quem está estudando para o Vestibular.
O romance, em sua época, fez muito sucesso, sendo traduzido e publicado até mesmo no Japão. Tem 3,1 estrelas no Skoob. A parte menos atrativa para os leitores atuais e a mais lenta é o começo. A história ganha um ritmo mais agradável depois que o narrador já apresentou os personagens e descreveu o lugar, concentrando-se na narrativa dos fatos.
Lembremos que Taunay já esteve no local da história, na época da Guerra do Paraguai, e podemos dizer, como base nas "Memórias" do autor, que Inocência é inspirada numa garota do lugar. Seu romance, ainda que não possa ser comparado a Dom Casmurro, não deixa de ser uma pequena pérola de nossa Literatura. A edição popular que tenho em mãos, de 160 páginas, me custou R$ 1,99. (Sim, foi comprada numa loja de 1,99.)
Também existem alguns filmes. O mais recente é a versão de 1983. E, antes que alguém pergunte, a resposta é sim; o Cinema, nessa época, já era a cores e tinha áudio.