Samara 15/01/2023Um narrador manipulador e um autor pedófiloRecentemente terminei de ler "A Sinfonia Pastoral", de André Gide.
O livro é o relato ficcional de um pastor que adotou uma jovem cega que não havia tido uma socialização comum. Sendo criada por sua avó surda e doente, ela não havia aprendido a falar e nem a se lavar ou fazer tarefas comuns. Aos poucos, o pastor ensina as coisas da vida (e da religião) para a jovem e acaba desenvolvendo um sentimento por ela.
O mais interessante desse livro é como o narrador é manipulador ao ponto de, às vezes, manipular a si mesmo. Muitas vezes ele usa de sua autoridade como representante de Deus pra fazer com que sua esposa aceite algumas coisas, como cuidar da cega, mesmo que ela já tenha outros filhos pra cuidar; ou convencer seu filho, que também desenvolveu sentimentos pela jovem, a não se declarar para ela. É com maestria que o pastor utiliza passagens da Bíblia até para se enganar em algumas coisas, buscando acreditar que seus sentimentos não eram pecado.
Se eu puder resumir a temática principal do livro, seria como a moralidade humana é volátil e pode ser muitas vezes distorcida.
O que me leva a pensar no próprio autor que escreveu a obra. Quando eu já estava no meio da leitura, eu descobri que André Gide era pedófilo. E declaradamente pedófilo, ao ponto de escrever livros tratando do assunto. Não pude deixar de me decepcionar com ele, e acho que só continuei a ler e falar do livro porque ele já está morto, logo, se eu convencesse alguém a ler (e comprar) o livro, isso não alteraria na vida de um homem que não merece.
Infelizmente, o prêmio Nobel não pensava como eu, e deram ao autor, em 1947, a milionária premiação, e o consequente aumento de visibilidade internacional que ela gera.
É difícil demais tratar deste assunto. "A Sinfonia Pastoral" é uma obra maravilhosa, e seu narrador é muito bem construído e os debates que ela gera são importantíssimos. Por outro lado, não deixo de questionar quais as intenções que o autor tinha em mostrar a capacidade humana de distorcer a própria moral. Seria uma tentativa de validar sua perversão sexual?