Lucas1429 31/03/2023
O estupor da fragilidade
Flannery O’Connor figura dentre as mais conceituadas letristas do século passado, numa escala moderna, no eixo dito “gótico sulista”, que contém representantes inflamados que tornaram suas criações de perfis ambivalentes, perturbadores, a falhos, utilizando do humor, da ironia e do horror, passando em exame os valores do sul estadunidense. Faulkner, Capote, Williams, são nomes ferrenhos da popularização do termo, comumente lembrados mais que O’Connor, sendo ela a mais dúbia e inesperada de seus colegas.
A constatação de sua excentricidade é prematura. Desde que se iniciou na literatura, através da universidade e de um concurso que publicaria seu primeiro romance, Flannery, oriunda de criação católica, escorraçava temáticas censuradas em sua análise crítica, assuntos que à sociedade permaneciam blindados: o racismo estrutural, a hipocrisia religiosa, a fragilidade humana. Os dois iniciais são tópicos de discussões entre especialistas contemporâneos, ao categorizá-la no montante de autores racistas, já que excruciava seus personagens negros aos maiores dissabores enfrentados em solo de suas ambientações. Claro que as interpretações acadêmicas não se inibem e permitem o benefício da dúvida, sua proposta era óbvia no criticismo alcançado, evocar nos leitores horrores que essas pessoas viveram/vivem, e como a causa era viabilizada por outro, em que ela, branca, proporcionava um olhar em equidade para brancos ou negros - lhe importava mais dissecar nossos comportamentos irredutíveis que militar, ainda que o fizesse despretensiosamente.
Este seu primeiro romance é estranhíssimo, selvagem, duro. Hazel Motes, recém dispensado do exército, retorna aos confins de sua origem totalmente mudado, tal qual o espaço que revisitará. A excentricidade da audaciosa O’Connor confia nele o oposto do protelado àquele povo, Hazel é defensor de uma ideia que extingue Jesus de seus protestos de fé. Para ele, não deve haver um líder tão concentrado. Para ele ainda, as pessoas não estão salvas, quando confiadas na concepção básica do divino, no discurso evangelista de um culto que seja. Decide instaurar uma igreja sem Cristo, sem um mártir como símbolo. Hazel poderia até mesmo sofrer de uma sequela dos anos que passou confinado à teoria do exército como salvadores terrenos - engano. Não deveria haver idealização de supremacia alguma de qualquer Ordem. Falha humana em acreditarmos termos posses do mundo. O trauma de Hazel vira sua descrença, e da autora.
Há mais alguns personagens que cruzam com Hazel, um pregador-impostor e sua filha ingênua, um jovem despropositado, mais aproveitadores. É um painel das pequenas comunidades da época que inseriam em suas políticas o molde da religião como moral impositiva. O catolicismo representava uma minoria perante o protestantismo no país, estes, são conjugados nas lembranças de Flannery, e também na trajetória de Hazel, como fanáticos implacáveis. O’Connor, que viveu em centros como esses, diria que o Norte era mais agradável e teria consentido sua permanência por lá, não fosse o lúpus, ainda de pouco conhecimento, que a manteria em sua terra natal, rodeada dos tipos que preencheriam suas histórias.
Portanto, cabe nestas poucas páginas decência a uma história não totalmente compreensível para todos, mas bem formulada na intenção de disfarçar uma quase parábola de um homem desacreditado, esquecido de fé, que obedece ao seu sangue sábio, que é definido como o instinto que retém a cada um. Seu instinto, diria, e dos demais, refere-se às sensíveis almas à caça e espera de um propósito que ainda é uma incógnita. Agem como devem agir, em conformidade ao sistema, ou confrontando ele. Todos estão presentes no romance. Parece que nem Deus respondeu estas finalidades e nos deixa à deriva até hoje. Flannery provavelmente sentia o mesmo.