willian.coelho. 18/05/2022
Death Note é reflexivo e atual
“Death Note" (2003-2006) é um seinen (mangá destinado ao público adulto masculino) escrito por Tsugumi Ohba e ilustrado por Takeshi Obata que poderia ser melhor caracterizado pelo gênero drama psicológico. Primeiramente, é válido salientar que a classificação referente à população-alvo da obra é meramente uma questão conceitual pertinente à comercialização das revistas no Japão, uma vez que a percepção da sensibilidade do conteúdo relativa à faixa etária destoa demais no ocidente. Ademais, parece ser também uma característica exclusiva da comunidade feminina japonesa não consumir esse tipo de enredo; na verdade, no Brasil, essa associação é invertida: o público masculino aparenta ser mais embrutecido para com a arte em suas distintas formas (é fácil prever uma rejeição ao estilo oriental). É possível que haja uma demarcação bem mais rude, no Japão, das temáticas sorvidas por cada sexo, e um dos motivos para isso é a moral social conservadora (em um experimento, defina seu Tinder para o extremo leste asiático e perceba que as mulheres escondem seus rostos). Todavia, é explícito, na trama de Ohba bem como na estética de Obata, o esforço de “ocidentalizar” o produto (obviamente na tentativa de vender mais, uma estratégia igualmente adotada em outras mídias, como os games): o desfecho é uma obra com elementos que oscilam sem conseguir se definir, culminando em uma atmosfera meio sintética. Vê-se muitas personagens imberbes, jovens adotando posturas incompatíveis, figurinos “goth kawaii” (que fazem desconhecedores da cultura nipônica crerem se tratar de moda emo), ou seja, itens típicos da produção daquele país; há, também, porém, constituintes americanizados, como o envolvimento do FBI, viagem a Los Angeles, protagonista feminina loira, regras do caderno em inglês, entre muitos outros.
O mangá conta a história de Raito, um notório aluno prestes a ingressar na universidade, que acha um caderno - derrubado no mundo humano pelo deus da morte Ryūku - que tem a capacidade de matar pessoas apenas escrevendo seus nomes enquanto se conhece suas faces. Em posse do indetectável e cirúrgico armamento, o intelectual protagonista almeja livrar o mundo de criminosos, contudo alguns “superdetetives” e organizações policiais tentam impedi-lo. Grosseiramente, toda a narrativa, que conta com pouco mais de 100 fascículos, pode ser dividida em dois grandes arcos: o embate contra o maior investigador do mundo L é o primeiro, o contra seus sucessores é o segundo. A qualidade do enredo é bastante superior no primeiro segmento por algumas razões: o antagonista L tem uma construção muito melhor do que seus pupilos - que se resumem a fragmentar as qualidades do seu ídolo (L) -; o intrincado texto, indubitavelmente competente no que se propõe - que é forjar uma espécie de duelo cerebral com uma aura sinistra e hostil -, começa a fraquejar e justificar a sua falta de coesão (cara à obra) com argumentos preguiçosos (por exemplo, o shinigami, que é uma unidade neutra, começa a ajudar); alguns componentes deveras desarmônicos surgem, como máfia, mísseis, sequestros e tiroteios. Há três triunfos em “Death Note” que devem ser ressaltados, inclusive porque são ingredientes marcantes de bons trabalhos do mesmo gênero: estruturação das personagens, tensão narrativa e reflexões sobre temas relevantes.
Raito Yagami tem uma personalidade complexa que vai se revelando e se detalhando aos poucos: é manipulador, egocêntrico, determinado, charmoso, elegante, psicopata e, mais importante ainda para a história, um típico fascistoide. Seu antagonista L é, da mesma forma, manipulador, narcisista e psicopata, entretanto é desengonçado, antissocial, apático, niilista, compulsivo e de moral bem questionável. É ordinário que as pessoas se identifiquem mais com o segundo, na medida em que suas características “vis” são sublimadas (é necessário destacar que não existe aqui uma trama maniqueísta, os protagonistas são ambos egoístas, é por conseguinte fundamental uma leitura capacitada para notar as nuances). Essas personagens, por si só, já sustentam ótimos diálogos, mas os demais não deixam a desejar: Misa Amane, constantemente objetificada, é o reflexo de um amor unilateral e doentio; cada indivíduo da força tarefa para capturar Kira exerce um papel único e significativo. É pelas causas supracitadas que o texto brocha ao apresentar os sucedâneos de L, visto que este demanda profundidade e esmero (não é que Near e Mello sejam de todo ruins, apenas não chegam aos pés do grande oponente de Kira).
Um dos pontos mais imponentes da criação astuciosa de Ohba é, com certeza, o seu potencial filosófico. Raito é um reacionário, filho de um ultramoralista, com o poder julgador do Estado concentrado em si que, por sinal, se amalgamou com a instituição, na figura de Thanatos, sendo o ente hobbesiano que define a direção do corpo social. Ao mesmo tempo, o sujeito na função de Deus é desafiado e acaba sucumbindo num fim catártico para um rival inferior pela obra do azar, demonstrando que nem sempre vence o melhor. E, ainda nesta linha, seus oponentes pouco queriam seu poder para realizarem algum objetivo: desejavam somente se refestelar no seu ego. De fundo, o observador eterno e imparcial (shinigami) vislumbra os homens se degladiando, de modo cíclico, para impor as suas vontades aos demais pelo simples fato de se imaginarem mais lúcidos, mas no fim tudo se esfacela na finitude da humanidade. Em um certo momento, o protagonista perde as suas memórias sobre o caderno e passa a se comportar diferente; isso ilustra as cruas vontades que as pessoas ocultam até de si mesmas guiadas pelos padrões comportamentais a não se manifestarem. O que dizer de Matsuda - que trabalha anos por uma causa que o desagrada? Enfim, são muitas reflexões que podem ser levantadas, mas ao leitor pelo menos uma é crucial: “o que você faria se obtivesse um death note?”
Para finalizar, há uma adaptação para anime absolutamente competente: bem desenhada, destaque para o áudio instrumental com feições melancólicas ou grandiosas, satisfatoriamente fiel à narrativa originária. São poucas alterações e a maioria está situada no segundo arco no qual as personagens já anêmicas de Mello e Near são ainda mais supérfluas, e o grande final perde um pouco de magnificência. Alguns acontecimentos da animação, como o desenlace de L, são até mais refinados. O material original é indicado somente aos verdadeiramente fãs, visto que os desenhos de Obata nem são tão esplêndidos para valer cerca de 2500 páginas. De adicionais que valem comentário, há duas “one-shots” ok, porém dispensáveis, e um livreto tenebroso de ruim.