Carina 11/09/2013
O abjeto se tornou sublime
Caio Fernando Abreu é um escritor que eu não conhecia fora as citações no facebook, o que me causava má impressão. Geralmente as citações, em redes sociais, são erroneamente atribuídas – uma tentativa de divulgar pensamentos clichê em embalagens de suposta intelectualidade.
O autor, entretanto, vai além das atribuições de frases falsas. Assim como vai além de nossa moralidade, valores, paradigmas. Os temas que norteiam os contos de Caio são considerados abjetos por nossa sociedade: homossexualidade, sexo, drogas, lepra, aids, loucura, morte. E de tão bem trabalhados, se tornam exemplos do sublime em matéria de literatura.
Contos do livro:
- “Corujas” (retrata a fascinação do narrador por duas corujas, que, uma vez capturadas, fazem greve de fome – um gesto de protesto pela liberdade roubada). Ótimo.;
- “Sargento Garcia” (relata a primeira vez de um adolescente sonhador com um sargento). Bom;
- “Garopaba mon amour” (jovens encurralados em um acampamento hippie pela polícia). Bom, mas confuso – permite várias interpretações quanto ao seu desfecho;
- “Terça-feira gorda” (uma relação homossexual na praia é violentamente interrompida. As descrições sexuais – comparando a boca do parceiro a um figo – são sensacionais). Bom;
- “Aconteceu na praça XV” (um casal desfeito se reencontra após algum tempo, com naturalidade fingida). Bom;
- “Os sobreviventes” (Um casal em crise; o rapaz avisa a companheira que tudo está acabado, pois ele fará uma viagem ao Sri Lanka). Bom;
- “Ao simulacro da imagerie” (mulher reencontra por acaso o ex-companheiro fazendo compras). Bom;
- “Uma história de borboletas” (após deixar o companheiro em um hospício, o protagonista vai se dando conta de sua própria loucura). Excelente;
- “O dia que Urano entrou em Escorpião” (jovens alternativos em uma república estão à beira da loucura). Mediano;
- “London, London ou Ajax, Brush and Rubish” (mistura excessiva de línguas que não leva a lugar algum). Ruim;
- “Morangos mofados” (um conto sobre a morte – quase uma nova versão do Ivan Ilitch). Bom;
- “O coração de Alzira” (uma dona de casa conformada com ter o descanso de domingo como único prêmio). Bom;
- “Os sapatinhos vermelhos” (após ser abandonada pelo amante casado, a protagonista busca aventuras sexuais ousadas às sextas-feiras). Bom;
- “Creme de alface” (cheia de pseudos-problemas, a protagonista burguesa desconta sua raiva chutando uma garota que mendigava). Bom;
- “Sim, ele deve ter um ascendente em peixes” (homem não consegue encontrar a própria casa). Bastante confuso;
- “Aqueles dois” (relação homoafetiva que se constrói aos poucos). Ótimo;
- “Linda, uma história horrível” (filho doente visita a casa da mãe em busca de algum conforto). Bom, mas confuso;
- “Holocausto” (doentes à margem da sociedade são o foco da trama). Bom;
- “Dama da noite” (prostituta conversa com adolescente e mina suas ilusões). Mediano;
- “Visita” (alguém visita o quarto de alguém que já morreu – eram amantes?). Confuso;
- “Sob o céu de Saigon” (descrição de jovens típicos da rua Augusta – excelente para uma aula sobre descrição). Bom;
- “Mel e girassóis” (relato delicado de um amor de praia que acha que não tem força para subir a serra). Ótimo;
- “Depois de agosto” (fim da vida de dois soro-positivos apaixonados). Bom.
Trechos:
“O céu tão azul lá fora, e aquele mal-estar aqui dentro.
Fora: quase novembro, a ventania de primavera levando para longe os últimos maus espíritos do inverno, cheiro de flores em jardins remotos, perfume das primeiras mangas maduras, morangos perdidos entre o monóxido de carbono dos automóveis entupindo as avenidas. Dentro: a fila que não andava, ar-condicionado estragado, senhoras gordas atropelando os outros pelos corredores estreitos sem pedir desculpas, seus carrinhos abarrotados, mortíferos feito tanques, criancinhas cibernéticas berrando pelos bonecos intergalácticos, caixas lentas, mal-educadas, mal-encaradas. E o suor e a náusea e a aflição de todos os supermercados do mundo nas manhãs de sábado.”
“ (...) piscar é uma espécie de vírgula que os olhos fazem quando querem mudar de assunto.”
“Rimbaud foi para a África, Virginia Woolf jogou-se num rio, Oscar Wilde foi para a prisão, Mick Jagger injetou silicone na boca e Arthur Miller casou com Norma Jean Baker, que acabou entrando na Hi$tória, Norman Mailer que o diga.”
“ (...) primeiro procura apartamento, depois trabalho, depois escola, depois, se sobrar tempo, amor.”
“Mas se o futuro, doutor, é um inevitável finalmente.”
“(...) minha vida não passa de um ontem não resolvido.”
“Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra.”
“E decidiu: vou viajar. Porque não morri, porque é verão, porque é tarde demais e eu quero ver, rever, transver, milver tudo que não vi e ainda mais do que já vi, como um danado, quero ver feito Pessoa, que também morreu sem encontrar.”