Maurino 01/05/2012
A emergência do Homem como Idéia.
Não é, de maneira alguma, um empreendimento simples resenhar uma obra como a Paidéia: a formação do homem grego; do filólogo alemão Werner Jaeger (1888 – 1961) - que foi, durante vinte anos, um influente professor em Harvard. Ora, tal dificuldade não se deve apenas à sua descomunal extensão - 1413 páginas em sua edição brasileira – mas principalmente à responsabilidade, naturalmente requerida, por se tratar de um notório clássico, que obteve uma imensa repercussão, não só em meio ao público em geral, para o qual ele foi originalmente escrito, como também no mundo acadêmico, onde foi ainda mais influente e marcou várias gerações.
Elaborado na década de 1920, em meio à primeira grande guerra mundial, quando toda a população planetária se impactava frente à avassaladora experiência histórica, ele tinha claramente a intenção de influenciar a cultura ocidental a reexaminar os seus próprios valores. Sim, o gentil e sereno helenista Jaeger tinha um ideal; e este só poderia se enraizar na experiência histórica da Grécia Antiga – quando filósofos, historiadores, oradores e poetas pujantemente o expressavam, como princípio formativo. Trata-se, como ele mesmo diz, do ideal grego de formação humana.
E abre-se um mundo na Grécia Antiga. Talvez pudéssemos, citando Höderlin, enunciar, em relação ao projeto de Jaeger, que dificilmente o que habita perto da origem abandona o lugar. Mas, o que então se revela na aurora grega? E qual seria o destino da nossa civilização? Parece-me que, pelo contrário, é no destinar-se que o homem se hominiza; que se constitui enquanto homem. Esse termo, destino, que lhe é tão caro e profusamente usado em toda a extensão da obra é menos um fim pré-determinado do que um processo dinâmico de formação, ou cultura, como a totalidade da obra criadora de um elevado tipo de Homem. Paidéia é a palavra utilizada para significar educação, a qual, para o autor, só começa com os Gregos. Portanto, enquanto momentos do tempo, passado, presente e futuro se fundem, sem se confundirem, numa vigorosa destinação epocal do Ser.
A Paidéia é mesmo um livro sobre a educação, mas sobre como Jaeger a entendia: um processo supremamente humano de formação, ativo e coletivo; um sentimento universal, ou expressão do espírito, em direção ao que os antigos conheciam como areté, ou virtude, excelência; fundamental ao que se entende nos dias de hoje como civilização. A história grega é, portanto, a história da educação como princípio de uma nova valoração do homem; que, jazendo na obscuridade, ainda viceja como consciência de si, na Europa Contemporânea. Entretanto, o uso freqüente de palavras como alma e espírito denuncia não só o escolasticismo como também a celebração de um ideal aristocrático, pouco disfarçado, que permeia toda a obra – talvez seja por isso que William Calder, no Dictionary American Biography, desconfie de um certo tom de evangelicismo humanista latente no livro.
Ademais, vários outros manifestaram críticas a seu respeito. Hugh Lloyd-Jones, por exemplo, se referiu à Paidéia como uma aborrecida história da civilização grega vista de uma perspectiva escolástica; já Arnaldo Momigliano, embora tenha admirado sua originalidade e sutileza, critica veementemente a insuficiência de referências, no que concerne à história social, econômica, jurídica e política da Grécia; enquanto Moses Finley, ratificando algumas acusações quanto ao caráter antidemocrático da obra, observa a falta de alusão à escravidão. Não obstante, afirme-se o que se quiser, essa expressão histórica do espírito na literatura e poesia tão representativa da areté humana – de acordo com as palavras de Jaeger – tem ainda muito a nos ensinar. De fato, a Paidéia é muito mais do que a celebração de um ideal, ou meramente um eloqüente e informativo guia de literatura grega, produzido por um acadêmico de notória confiabilidade, conhecimento enciclopédico e extraordinária imaginação. A Paidéia é também o resultado de uma atitude; de certa pré-concepção de filosofia – como talvez nos dissesse Martial Guéroult. Assim, deslindando a sua história da educação, ou da formação do homem grego, Werner Jaeger nos instrui quanto à sua própria filosofia. Em uma era marcada pelo individualismo moderno, ele sabe muito bem onde encontrar o seu ideal: na antiga cultura grega – talvez, mais explicitamente em Platão, o modelador de almas. Assim como vê na República, o mais formoso estudo jamais escrito sobre educação, nas Leis Jaeger afirma que Platão esboça uma definição da Paidéia oposta ao saber especializado dos homens, ou seja, como a essência de toda a verdadeira educação: educação na areté que enche o homem do desejo e da ânsia de se tornar um cidadão perfeito, e o ensina a mandar e obedecer, sobre o fundamento de justiça. De acordo com a sua própria definição, enquanto um ideal vigoroso a Paidéia é
O fenômeno imperecível da educação antiga e o impulso que a orientou, a partir da sua própria essência espiritual e do movimento histórico a que deu lugar.
Dividida em quatro extensos livros, a Paidéia ressalta que a educação e o desenvolvimento social e cultural que dela advêm, resultam - em seu início glorioso, na Grécia – da consciência das normas e valores que regem a vida humana em sociedade - numa espécie de união espiritual viva e ativa e na comunidade de um destino. E essa nova concepção de educação, que se confunde com a própria cultura grega, na medida em que ia avançando no devir histórico ia sendo gravado na consciência dos homens como o sentido e a justificação última de sua humanidade; isto é, ela ia se essencializando em vicissitudes de destinações e de retenções do Ser como totalidade.
Seja em Homero, Hesíodo, Sólon, Ésquilo, Sófocles, entre os sofistas, Eurípedes, Aristófanes, Sócrates ou Platão; um ideal próprio de formação humana – donde brota o impulso criador do espírito do povo – se eterniza como destino e ainda se mantém; enquanto virtualidade. Em todas as criações desse espírito grego repousa a continuidade e descontinuidade das épocas históricas. Irrompendo da Idéia, como seu autêntico Ser, o homem grego de Jaeger, que se revela nas grandes obras do espírito como homem político é a locanda, em cujo espaço se desdobra a verdade dos entes. Esse homem é histórico, na medida em que faz e é feito pela História. Eis a minha sucinta compreensão da Paidéia, esse livro fantástico e imprescindível que Werner Jaeger nos dispõe.