Marc 26/11/2021
Frequentemente nos enganamos pensando que a Segunda Guerra, conflito que teve o nazismo e o fascismo como inimigos, além da heroica luta da URSS, modificou o mundo de uma forma tão profunda que o século XX começou ali. Mas, na verdade, é a Primeira Guerra e tudo que ela trouxe que deu origem ao que conhecemos, tanto em termos de organização da sociedade, quanto de valores morais. O que Modris Eksteins mostra que é que o mundo sofreu uma transformação tão radical um pouco antes da Primeira Guerra Mundial que só podemos entender os anos 30 e 40 à luz dessas modificações. A tese do livro é essa, portanto, sobre a destruição acelerada e como só podemos entender as duas guerras à luz do processo de destruição do mundo antigo e criação de algo em seu lugar. É difícil falar que haviam valores na criação desse novo mundo, pois ele começa apenas com a obrigação da destruição, um pouco sem saber o que fazer depois dela. É uma época niilista, para usar a expressão consagrada de um de seus arautos, Nietzsche.
Esse comentário não é um resumo do livro. Embora discuta sua tese, me apropriei muito particularmente dessa leitura, pois ela acaba referendando e me ajudando a orientar meus próprios estudos sobre o fascismo e o nazismo. Dedico a maior parte de meu comentário a esse tema, mesmo que o livro trate dele só no fim, embora com extrema perspicácia, pois o autor não se deixa levar por discussões tolas a respeito do espectro ideológico ao qual o nazismo pertencia, partindo da realidade do regime, de suas práticas e como elas entravam em contradição com seu discurso.
Como o título sugere, até meados da década de 1910, haviam poucos indícios de que sob a superfície algo fervilhava, mas a emblemática estreia da peça de Stravinski escancarou as portas para esse novo mundo. Sua estreia foi marcada por críticas exacerbadas, até mesmo protestos e xingamentos durante a exibição do balé. O grupo russo que montou o espetáculo que estreou em Paris era formado por radicais, uma vanguarda intelectual e artística, com novos valores morais. Era um espetáculo criado para subverter a arte e o pensamento da época, com coreografias inusitadas e consideradas sem sentido por muitos dos presentes. Muitos críticos especializados não conseguiram fornecer um retrato fidedigno do que haviam assistido, demonstrando sua incapacidade de compreensão. “A Sagração da Primavera” era inovadora demais para a sociedade da época. E, assim, serve como símbolo do que estava por vir. Seria uma época marcada pelo sentimento de impotência e perplexidade das pessoas frente às mudanças violentas que presenciavam. Ninguém conseguia compreender e nem interferir, o que gerou um sentimento de que o movimento era inevitável, de que as mudanças eram inevitáveis.
Cerca de um ano depois da estreia do balé o conflito começava, sob um enorme entusiasmo de todos. Não se sabia exatamente o que seria uma guerra daquele porte, afinal, os países europeus estavam acostumados a conflitos em suas colônias e às antigas guerras do século anterior, não conheciam o desenvolvimento tecnológico que agora estava ao alcance de todos. O uso de armas mais potentes, equipamentos variados, gás (é muito conhecida a imagem dos soldados com a máscara para se proteger), veículos e tudo o mais que a tecnologia propiciava — além de enormes contingentes, algo impensável até então — fez com que a guerra assumisse uma proporção inimaginável em seu princípio. Quando a guerra foi declarada, as populações faziam festa, sonhando com glórias e novos tempos, mas cerca de um ano depois, o desânimo pela falta de perspectiva e direção tomou o continente inteiro de assalto. Ninguém sabia como vencer a guerra, como reduzir as baixas, que aconteciam numa escala assustadora; o conflito se aprofundava e arrastava o continente inteiro para a lama e a perdição.
Embora o livro mencione apenas de passagem, os soldados que sobreviveram haviam se tornado pessoas muito diferentes das que suas famílias conheciam. O trauma, as neuroses, as psicoses e perversões causadas pelo convívio com o horror sem precedentes era algo novo, também. A verdade é que com a Primeira Guerra, a humanidade descobriu seu potencial para o horror e a destruição. Como destaca Walter Benjamin — que ainda não conhecia o conceito de estresse pós-traumático, que a psicologia iria desenvolver logo depois —, os soldados voltaram do campo de batalha não mais ricos de experiências, e sim mais pobres; não havia relatos de heroísmo, de grandes feitos, das batalhas e da emoção do combate, apenas silêncio e sofrimento sem fim, com muitos soldados se tornando agressivos, viciados e perigosos.
O que a guerra faz é modificar completamente a sociedade. “Para os alemães, esta guerra devia mudar o mundo; para os britânicos, ela devia preservar o mundo. Os alemães eram impulsionados por uma visão, os britânicos por um legado” (p. 146). Eram duas visões de mundo opostas lutando entre si. Para os alemães, que sonhavam com um império tão poderoso quanto o inglês, que chegou a ter sob seu domínio metade do mundo (“o sol nunca se põe no império britânico”), a guerra era um meio de derrotar aqueles que lhes impediam de ascender à condição de potência continental e mundial. Para o ingleses, significava a defesa de seu modo de vida e de suas conquistas mundo afora. Enquanto a marinha britânica era a maior do mundo, o exército alemão se tornou o maior e mais poderoso em poucos anos. O choque era inevitável, portanto.
É muito interesse como o livro captura as impressões que os inimigos tinham uns dos outros. Todos acreditavam que seu lado defendia os verdadeiros valores, que o inimigo era uma espécie de bárbaro. Por exemplo, os alemães viam os ingleses como um povo de comerciantes, desalmados e interesseiros; os ingleses viam os alemães como irresponsáveis, destruidores da ordem e da paz que o império britânico havia trazido ao mundo. Eram duas maneiras de conceber a realidade que só poderiam lutar entre si, pois não teriam como conviver.
Se a Alemanha perdeu a guerra, sendo humilhada nos acordos de pacificação, a longo prazo, o mundo jamais seria o mesmo. Podemos dizer que sua vitória não foi visível no momento, mas que ela venceu, sim, a guerra, pois a Inglaterra decaiu, seu império começou a se fragmentar, países passaram a lutar por sua liberdade (o exemplo mais lembrado é a Índia) e mesmo internamente, no continente, o modo de vida inglês deixou de ser o dominante (sua visão de mundo, que era mais voltada para a conformidade do indivíduo à sociedade, o bem comum). “O homem fora libertado. A liberdade não era mais uma questão de ser livre para fazer o que é moralmente certo e eticamente responsável. A liberdade tornou-se um assunto pessoal, uma responsabilidade para consigo mesmo acima de tudo. O impulso moderno antes da guerra possuía uma forte dose de otimismo, proveniente de uma religião burguesa do aperfeiçoamento. Esse otimismo não havia desaparecido inteiramente na década de 1920, mas agora era mais desejo do que previsão confiante. Ele se encontrava num cenário de destruição e desolação, não só de esterilidade, como o que a vanguarda tanto desprezara antes da guerra” (p. 314).
E, lentamente, o livro vai mostrando como essa derrota alemã levou a um terror maior em sequência: o nazismo. Embora o livro seja quase que inteiramente uma descrição da Primeira Guerra, a tese do livro só se completa com a explicação das origens do fascismo e do nazismo. A década de 1920, já suficientemente distante da tragédia, vê o surgimento de inúmeros relatos da guerra, mas com uma particularidade preocupante: eram todos relatos pouco realistas, de pessoas que viveram somente a periferia da guerra, ou participaram pouquíssimo tempo das batalhas. A guerra, mesmo depois da morte de milhões, da destruição de cidades inteiras, de sobreviventes amputados e traumatizados, estava voltando a ser idealizada e vista como a cena perfeita para que os corajosos e heroicos se destacassem. É essa transformação que será tomada pelos nazistas como uma das características fundamentais do povo alemão, pois era uma forma de lidar com o duro sentimento da derrota e “dar a volta por cima”, como diriam os leitores de autoajuda.
Tendemos a pensar — pois é a corrente dominante na filosofia e ciências humanas — que o nazismo é consequência direta da humilhação da Alemanha com os tratados de reparação pela Primeira Guerra, mas o que esse livro nos mostra é que os eventos estão ligados, mas de uma maneira muito mais profunda. O nazismo é mais um fruto dessa modernidade que começou no século XX derrubando tudo que tinha pela frente. A Primeira Guerra foi um evento importante, mas os valores morais, o pensamento, o comportamento, tudo estava mudando de modo acelerado e, embora as aparências do mundo novecentista ainda estivessem de pé, tudo havia mudado. É nesse sentido que se diz que a Alemanha, que representava as mudanças em todas essas áreas, venceu a Primeira Guerra, pois o mundo jamais retornou àquela configuração e os valores sofreram mudanças drásticas.
Dessa forma, o nazismo, progressista como é, encarnou aquelas mudanças como ninguém. Ele foi a aceleração, ampliação e aprofundamento das mudanças que foram encabeçadas pela própria Alemanha décadas antes, mas que ainda eram tímidas perto do que ocorreu depois. “Apesar de que a maioria das interpretações do nazismo o vejam como uma ‘eclosão de apego ao passado’, como nas palavras de Thomas Mann, um movimento reacionário, decidido a transformar a Alemanha em um comunidade pastoral folclórica de cabanas de palha e camponeses felizes, o impulso geral do movimento era, apesar dos arcaísmos, futurista. O nazismo foi um mergulho de cabeça no futuro, em direção a um ‘admirável mundo novo’. É claro que ele aproveitou ao máximo os anseios conservadores e utópicos residuais, prestou homenagem a essas visões românticas e extraiu do passado alemão suas iscas ideológicas, mas seus objetivos eram, vistos a sua própria luz, distintamente progressistas. O nazismo não era um Jano de face dupla, com os rostos igualmente atentos ao passado e ao futuro, nem um Proteu moderno, o deus da metamorfose, que duplica as formas pré-existentes. A intenção do movimento era criar um novo tipo de ser humano de quem surgiria uma nova moral, um novo sistema social e, por fim, uma nova ordem internacional. Essa era, de fato, a intenção de todos os movimentos fascistas” (p. 355).
Eis o ponto de confluência de todas as ideologias políticas que buscavam afirmação ou a dominação completa na época: o desejo de produzir um novo ser humano, novos valores, uma nova sociedade e um novo mundo. Embora se possa dizer que o nazismo apresentasse até uma retórica reacionária (traço comum ao fascismo, de modo geral e que os distingue do comunismo, daí a oposição que se construiu e que é sustentada até hoje por pensadores de esquerda), sua prática era progressista e o objetivo final era a construção de um novo mundo. “Viram-se no movimento contradições chocantes entre as declarações programáticas e a política real. O campesinato foi louvado como a ‘força vital da nação’, mas o despovoamento das áreas rurais avançou e a Alemanha se tornou mais urbanizada durante o Terceiro Reich. Foram feitas promessas de fornecer a cada alemão ‘uma casinha no campo’, mas os planos de construção nazista se concentraram quase exclusivamente na arquitetura urbana monumental. As mulheres deveriam permanecer em casa e se dedicar ao papel de mães, mas mesmo antes da eclosão da guerra em 1939, havia mais mulheres na força de trabalho do que nunca. O pequeno empresário deveria prosperar no Terceiro Reich, mas na realidade os negócios e a indústria tornaram-se mais concentrados. As contradições, como as animosidades, eram inúmeras” (p. 370).
O que caracteriza todos os movimentos políticos, filosóficos e estéticos daquele momento é essa urgência de refazer a humanidade. Em termos filosóficos, depois que a religião perde a predominância que tinha até principalmente o século XVII/ XVIII, a humanidade se empenha, através de inúmeros pensadores, em desfazer todos os valores cristãos e recomeçar, explorando o “potencial humano” decorrente da libertação dos grilhões da religião. Os homens eram cerceados, tendo seu enorme potencial limitado por uma moralidade que apenas os diminuía. A morte de Deus possibilita que a humanidade assuma o controle de seu destino — ao menos era isso que esses pensadores acreditavam. Mesmo Nietzsche, que dizia não ter fé em nada, foi contaminado por essa ideologia, afinal, o que é a transvaloração de todos os valores senão aquilo que Voegelin define como fé metastática? A crença num recomeço, na destruição do mundo antigo e no surgimento de uma nova sociedade. Tudo isso unicamente com as forças humanas, claro. E o conceito de Voegelin, propositalmente, ressoa uma doença que espalha-se e domina um organismo. Pois é assim que a ideologia faz, ela é disseminada pela sociedade toda, convencendo as pessoas que tudo já foi pensado e que as mudanças não tem como dar errado.
Dizer que o nazismo era uma ideologia reacionária é um grave erro de entendimento — ou de mascaramento — da história. O livro demonstra que o mundo antigo estava sendo, literalmente, posto abaixo, porque havia planos de construir um novo centro para o mundo, todos eles passando pelas cidades alemãs. O que o nazismo faz é atualizar, direcionando para alguns aspectos e se utilizando do sentimento de revanche que os alemães sentiam pela derrota da Primeira Guerra. Não é possível sequer começar a compreender o que foram os movimentos fascistas se não houver essa conexão com as vanguardas do começo do século. O sentimento era de que a elite intelectual deveria não apenas dar início, mas conduzir a humanidade até um novo estágio, uma nova sociedade. “O nazismo foi uma variante popular de muitos dos impulsos da vanguarda. Expressou em um nível mais popular muitas das mesmas tendências e postulou muitas das mesmas soluções oferecidas pela vanguarda no nível da ‘arte erudita’. Acima de tudo, o nazismo, como a modernidade que afirmava detestar, tentou unir subjetivismo e tecnicismo” (p. 363). Essa união de tecnicismo e subjetivismo descobriu a morte em escala industrial com os campos de concentração, “solução” para aprisionamento de todas as figuras contrárias ao regime, herdada dos soviéticos e aperfeiçoada — se assim podemos dizer. Todos esses movimentos, mesmo os da arte, estão entrelaçados e compõem um todo que provocou os grandes desastres do século. Ao mesmo tempo, o fascismo representa um novo estágio de organização política, como se fosse um degrau do poder sobre o indivíduo, novas descobertas de como lidar com o corpo, os valores e destruir a personalidade. Depois das descobertas, como se fosse uma maré que chega a um lugar novo, há um recuo, mas quem viu, jamais será capaz de esquecer até onde ela chegou. A possibilidade do horror estará sempre no ar. E, para completar, a importância de compreender, também, que o fascismo traz uma nova linguagem política. Sem ela, seria impossível chegar ao poder.
Veja como esse fenômeno não necessita da análise clássica (ditadura do capital) para ser compreendido: o fascismo é um movimento de vanguarda, progressista, com uma retórica reacionária, para seduzir as massas. Mas é, também, o prosseguimento do processo de erosão dos valores cristãos do Ocidente e um novo estágio do poder sobre o indivíduo. Além de ser uma novidade em termos de linguagem política, o que significa um novo modo de tratar a sociedade, o indivíduo e a introdução de problemas que não existiam no vocabulário político de então (vide a legislação trabalhista, apenas para usar um exemplo consagrado e bastante atual em nosso país até hoje). Naturalmente, não se chega ao poder sem dinheiro, o que implica participação da elite econômica; mas não se trata, de forma alguma, de um movimento isolado dessa esfera. Os intelectuais fornecem todo o aparato ideológico, todo o instrumental filosófico e a ciência política para sua realização — isso sem falar nas ciências biológicas e exatas, que tiveram sua participação, cada uma a seu modo. Como Modris Eksteins destaca, o fascismo só existe porque é a continuidade do progressismo que dominou a Europa no começo do século XX — arrisco dizer que o processo é anterior, ao menos desde o século XVIII.