jota 12/10/2011O louro da RenâniaMefisto (1936) é o livro mais conhecido de Klaus Mann, filho de Thomas Mann. Resumidamente, é a história de um ator que vende a alma ao diabo, i. e., aos nazistas. Baseado na vida real de Gustaf Grundgens (que foi casado por pouco tempo com Erika Mann, irmã de Klaus), a publicação da obra tornou-se ela mesma uma história complicada e confusa. Ao final da edição há um anexo, um relato de cerca de dezoito páginas que explica o que aconteceu (e sugere que, de algum modo, tudo isso teria contribuído para o suicídio de Klaus, de uma overdose de soníferos, em 1949). Também temos um prefácio esclarecedor, escrito pelo tradutor brasileiro.
Hendrik Höfgen já era um ator bastante apreciado pelo público e pelas autoridades alemãs em 1936. Nesse ano, durante a festa de 43 anos do primeiro-ministro, o gordo, na ausência do guia da nação, o Führer, a grande estrela da noite acabou mesmo sendo o sedutor e maneiroso Höfgen, diretor do Teatro Nacional da Prússia. Antes disso, vamos encontrá-lo no Teatro de Arte de Hamburgo, quando não era tão conhecido nem muito apreciado pelos colegas de profissão. Dentre outras coisas, detestava que o chamassem pelo nome verdadeiro Heinz. Também ficamos sabendo do seu envolvimento com uma suposta princesa africana, Tebab, a Vênus Negra, cujo nome é mesmo Juliette Martens. Ela é filha de uma africana com um engenheiro hamburguês, mas os traços do pai pouco se fizeram presentes na filha, então Juliette é uma figura exótica e cultiva seu exotismo. Que agrada profundamente ao ator.
Hendrik e Juliette mantêm uma relação atribulada, ao mesmo tempo em que ela lhe ensina dança. Mas Hendrik também se envolve com uma moça de família tradicional, Barbara Bruckner, que conheceu através de Nicoletta, uma jovem atriz da mesma companhia teatral. Hendrik e Barbara parecem se gostar e decidem se casar. Algum tempo depois ele topa com Tebab; os dois discutem, ele diz que a africana o persegue, vigia seus passos. Mas ele ainda a deseja. E também deseja atuar em Berlim, que proporciona fama nacional aos atores de teatro.
Através de pessoas influentes consegue um contrato na Kurfürstendamm, ainda que ganhando menos e que vá residir num pequeno imóvel. O casal deixa então Hamburgo e a princesa africana some de cena durante algum tempo. Depois Barbara começa a ficar enjoada com o comportamento do marido, pensa em voltar definitivamente para Hamburgo, e Hendrik pede a Tebab que venha morar em Berlim.
Logo na segunda peça apresentada na cidade Hendrik alcança grande sucesso de público e a crítica. Melhoram seu contrato de trabalho. Faz também alguns filmes e na temporada de 1932/1933 atua em Fausto, de Goethe, como Mefisto. Um sucesso esplendoroso, intimamente ligado à era de maldade que vai tomando conta da Alemanha.
Hendrik, que antipatizava com o nacional-socialismo e tinha amigos comunistas, após a temporada teatral de Fausto se refugia em Paris, temeroso por represálias. Depois, como não era judeu nem filiado a partido político e era comprovadamente um ariano, um louro da Renânia, as autoridades concedem que ele volte a atuar em Berlim. E há uma remontagem de Fausto, ele novamente no papel de Mefisto: as autoridades do Terceiro Reich se rendem ao talento interpretativo de Hendrik. Ao apertar a mão do primeiro-ministro ele percebe que não há mais volta: renega suas convicções do passado e feito seu personagem, vende a alma ao diabo. Reconhece-se como alguém que passou para o lado do mal, mas está feliz e orgulhoso de seu sucesso. Ao mesmo tempo conserva algumas antigas convicções políticas e artísticas; pensa e age dubiamente, tenta ajudar alguns amigos perseguidos pelo regime e despreza as peças que apenas enaltecem o regime.
Barbara se refugia em Paris e passa a combater o nazismo através de publicações; solicita o divórcio a Hendrik, que é rapidamente concedido (ela não era uma ariana pura) e agora ele tem de se livrar de Tebab, que é negra; ele não deseja ser visto em sua companhia em hipótese alguma; recomenda à amante ir embora de Berlim o quanto antes. E estreita ainda mais sua amizade com as autoridades do Terceiro Reich. Casa-se com Nicoletta. Por suas íntimas relações com os cabeças do Terceiro Reich, ainda que o ministro da Propaganda, o manco, não o suporte e conspire contra ele, é nomeado diretor do Teatro Nacional, o posto mais alto da cultura alemã naquele momento. Não bastasse isso, é nomeado, pelo primeiro-ministro do Führer, “conselheiro de Estado” e depois promovido a “senador”.
Mas tudo isso Klaus Mann nos conta de uma forma irônica, dissimulada (e às vezes debochada, especialmente quando se refere ao Führer e seus asseclas ou aos membros da alta sociedade alemã), que deve ter sido o jeito possível de fazê-lo em 1936, quando os nazistas já estavam amplamente consolidados no poder e espalhavam suas ramificações por diversos países europeus e havia delatores por toda parte. O final do livro é patético, então. E logo depois vem um aviso: “Todos os personagens deste livro representam tipos, e não pessoas reais.” Senão a obra jamais seria publicada (relembro que não foi fácil para Klaus Mann publicá-la).
Ainda que seja um livro de tamanho médio (318 páginas), a leitura de Mefisto nem sempre é muito fácil, as letras são pequenas, os capítulos são bastante longos e, especialmente, o tema abordado é complexo. Da mesma forma que não é fácil ler Doutor Fausto, de Thomas Mann (filho e pai trataram do mesmo tema em seus livros – a sedução do poder), Mefisto também exige alguma atenção a mais do leitor e um pouco de conhecimento de história relativa ao período que antecede a II Guerra Mundial.
Bem antes que o livro chegue à metade, a história de Hendrik Höfgen já nos envolve completamente e assim será até o final. E aí, se já não tinha se dado conta antes, o leitor compreenderá então que esteve o tempo todo na companhia de um grande autor e de um ótimo livro. Mas que certamente não vai agradar a todo mundo.