Andreia Santana 09/06/2012
Branca de Neve, princesa imortal
A julgar pelas vezes incontáveis em que a madrasta má tentou eliminar a enteada Branca de Neve e essa retornou dos mortos, literalmente, era de se imaginar que mais de 300 anos atrás, a hecatombe zumbi tão em moda ultimamente já tinha começado. Brincadeiras à parte, Branca de Neve está mais para imortal do que rediviva. O mito antigo, recriado século após século, ganha nova luz com o lançamento de Branca de Neve: Os Contos Clássicos, do selo Generale (Editora Évora).
Pegando carona nas duas superproduções cinematográficas sobre a princesa da maçã envenenada – Espelho, Espelho Meu e Branca de Neve e o Caçador -, o livro, organizado pelo brasileiro Alexandre Callari, é uma boa introdução a quem quer penetrar o mundo das lendas, mitos e símbolos antigos. Não foi escrito para especialistas no assunto, mas para entreter e informar o leitor médio, sem academicismos, mas tampouco sem fazer feio diante dos especialistas. De brinde, o leitor ainda ganha uma releitura do clássico, em uma história totalmente inédita e escrita pelo próprio Callari.
Branca de Neve: Os Contos Clássicos é dividido em três partes. Na primeira, o autor reúne sete versões do antigo mito. São textos dos séculos XVII, XVIII e XIX. O primeiro, como não poderia deixar de ser, é o conto dos irmãos Grimm, Pequena Branca de Neve, em sua versão original, incluindo a desconcertante passagem da madrasta má punida por suas injúrias com uma tortura de arrepiar os inquisidores-mor da Idade Média: dançar em sapatos de ferro escaldante até a morte.
O último conto dessa primeira parte do livro é uma versão da história dos irmãos Grimm, transposto em forma de poema por ninguém menos que Alexandre Pushkin, que adaptou o conto à realidade da Rússia dos czares. Vale destacar ainda, o conto escocês Árvore-Dourada e Árvore-Prateada, de Joseph Jacobs, em que ao invés da madrasta, Branca de Neve sofre maus-tratos da própria mãe. Importante ressaltar que o autor não deixa de fora nem mesmo as versões que flertam com a necrofilia e o incesto.
Para cada conto apresentado, Callari tece um pequeno comentário de contextualização, lógico que após o fim de cada história, numa decisão acertada de não cansar o leitor com notas de rodapé e nem desviar o foco da narrativa para comentários que inseridos no meio da história, atrapalhariam a imersão no conto de fadas. Primeiro, vem o encantamento, surpresa ou repulsa pela versão em questão; depois, as explicações que ajudam a digerir a história e saber mais sobre as intrigantes personagens da Branca de Neve e sua mãe/madrasta.
Nada fica de fora dos comentários do autor, que embora breves, são precisos. Nem a passividade de Branca de Neve diante do seu cruel destino, nem o discurso subliminar de obediência e subserviência feminina, reforçado em muitos casos pela punição à madrasta, que ousa tomar conta de si mesma em um mundo masculino e ainda usa “artes malignas” para manipular os que estão ao seu redor. Nem todas as versões, porém, terminam com o bem triunfando sobre o mal, algo curioso de notar, visto que de Disney para cá, Branca de Neve passou por uma assepsia, moldando-se ao público infantil, quando na origem, contos de fadas eram diversão de gente grande.
Na segunda parte da obra, Callari faz um apanhado no melhor estilo almanaque, enumerando e apresentando os produtos culturais resultantes da sobrevivência secular do mito, como os filmes, desde a era muda até os mais recentes; as animações, com destaque para o divisor de águas Branca de Neve e os Sete Anões, da Disney; as peças de teatro, as HQs e os pastiches.
Aqui, vale louvar a atitude do autor em recolher as melhores versões contemporâneas para o conto da Branca de Neve. Assim que peguei o livro de Callari para ler, a primeira coisa que me veio à mente foi Neve, Vidro e Maças, de Neil Gaiman, que li na coletânea Fumaça e Espelhos (Via Lettera) e que me causou uma enorme impressão justamente porque flerta com a atmosfera soturna dos contos antigos. Quem ainda não leu essa história, está mais que recomendada. E Alexandre Callari não me decepciona, abre o capítulo sobre os pastiches justamente lembrando o conto de Gaiman.
A terceira e última parte é dedicada a versão inédita escrita pelo próprio Callari, que faz uso de uma interessante mistura de fábula e novela de cavalaria, transformando sua Branca de Neve em uma história não só sobre ciúme, inveja e vaidade, temas que estão no cerne da lenda original, mas também em uma jornada de autodescoberta para a jovem heroína. A Branca de Callari começa a história como a indefesa vítima da maldade alheia, mas termina como senhora do próprio destino, ao invés de viver à sombra de um príncipe salvador.
De negativo, o livro tem só o aspecto físico da edição. Por ser uma obra de preço mais acessível, a opção foi por um papel de qualidade inferior e manter as ilustrações em miniatura e preto e branco, o que diminui a beleza do esforço em reunir gravuras antigas que reproduzem passagens do conto. Se fossem coloridas e em tamanho maior, além das informações valiosas que traz, o livro ainda nos brindaria com um deleite visual sem igual.