Cármen 16/09/2012Adeus à humanidadeEm Adeus à humanidade, da autora carioca Márcia Rubim, os fatos são narrados, em primeira pessoa, por Stephanie. É pelo ponto de vista dela, de seus princípios e de sua humanidade que o leitor vai tomando conhecimento do mundo de em que vive: a superficialidade de suas relações amorosas, sua acomodação com a situação familiar, seu quase distanciamento afetivo em relação à mãe, por sentir-se tão diferente fisicamente dela e, em contrapartida a isso tudo, o enorme apego a Juninho, seu meio-irmão. É a própria Stephanie, jovem carioca de aproximadamente 20 anos, quem expõe - diante dos nossos ávidos olhos de leitor - sua confortável situação econômica, devido ao fato de ser filha de um renomado hematologista, que vive no exterior com sua segunda esposa. Ela descreve-se como estável emocionalmente, é uma menina do bem, enfim, é normal, humana.
Mas Stephanie também deixa bem claro que se sente vazia, com um “buraco que não conseguia preencher”:
"Às vezes eu parecia um peixe fora d’agua. Sentia falta de ter um objetivo, de fazer planos para o futuro. Não fazia parte de lugar nenhum neste mundo. (...) Nada mudava, inclusive eu. “(p.12)
Então, algo acontece na imutável existência de Stephanie: Seu pai desaparece misteriosamente e, com ele, a estabilidade financeira, obrigando-a a tomar atitudes drásticas para o seu acomodado padrão comportamental. Ela vai à luta em busca da subsistência, pois é a única em condições de fazê-lo, não só pelo bem da mãe e do irmão, a quem tanto ama, como também por ela própria.
É neste momento que a verdadeira essência dessa jovem vem à tona. A vida despreocupada no Rio de Janeiro é substituída por uma rotina pesada de trabalho em São Paulo, para onde se vê obrigada a mudar na busca de um melhor salário como enfermeira. Toda a capacidade de luta que tinha guardada dentro de si (e que acredito que nem ela mesma sabia ter), a ponto de privar-se inclusive de uma boa alimentação a fim de fazer economias para ajudar no tratamento do irmão, é posta em cena e uma nova Stephanie nasce. A enfermeira Stephanie, competente, capaz, determinada e criteriosa. Mas ainda vazia:
“Agora sim, estava realmente sozinha... – refleti.
Ou melhor, eu e o meu vazio. Ele sempre me acompanhava onde quer que eu estivesse, em qualquer época e intensamente. E tudo o que ele fazia era somente crescer, como se o nada pudesse ser medido.” (p.56)
Nesta nova fase de sua vida, com todas as dificuldades que enfrenta, ela mostra um lado interessante de sua personalidade, que é a capacidade achar graça de si própria e de algumas situações embaraçosas em se vê envolvida, inclusive em relação ao difícil Dr. Richard, o médico infalível, o exigente e temido hematologista bonitão, mas também o “insuportável” do hospital no qual ela acaba indo trabalhar.
“A vida é mesmo uma coisa muito estranha”...
É desta maneira que Stephanie começa contando sua história. Mas ao mesmo tempo em que ela faz essa constatação, sua vida vai seguindo por caminhos que parecem ter sido traçados “na maternidade” (olha a engraçadinha da Stephanie soprando palavras no meu ouvido rsrsrsr) desde 1872: neta de uma mulher que era portadora de uma doença sanguínea rara e incurável, filha de um hematologista desaparecido de forma inexplicável, trabalhando em um hospital como enfermeira assistente de um hematologista muito atraente, mas também misterioso e fascinante, por quem ela está perdidamente apaixonada. Bingo!
Salta por entre as linhas, a cada página lida que o “vazio” de Stephanie está prestes a ser preenchido, por mais que ela tente fugir disso. E como ela tenta.
A realidade do que Richard realmente é cai na existência de Stephanie como uma bomba, mas ela, mais uma vez, supera-se e deixa que o amor assuma o comando de sua essência humana. Por fim ela encontrara o que tanto lhe faltava, a sua metade da laranja, e não seria a diferença que havia entre eles a fazê-la desistir:
“...salvara todas as pessoas que dele dependiam... E estava salvando a minha também. Curando meu vazio, que fora preenchido totalmente por seu amor, livrando-me de um buraco negro no qual havia caído, pensando em nunca mais dele ser possível retornar.” (p.203)
Em Adeus à humanidade, além da história de um amor improvável mostra aos leitores também o quanto é possível superar diferenças e dificuldades impostas pela vida (ou pela morte). Viver para amar ou amar a ponto de morrer é o que importa para Stephanie a partir do momento em que assume seu amor por Richard e ambos dão provas disso: ele ao arriscar a vida para curá-la, ela, ao aceitar incondicionalmente a existência cheia de amor, mas fora da humanidade ao lado dele para sempre.
Considerações canarinas:
Adeus à humanidade, para mim, começa não no primeiro capítulo, mas na dedicatória, onde a autora, Márcia Rubim faz a dedicatória: “ao meu pai, que me transmitiu a paixão pelos livros.” Não que no momento em que, afoita, recebi-o e da mesma forma mergulhei na leitura, tivesse me percebido. Não, mas como a minha paixão pelos livros é também física, cheirar, manusear de trás pra frente e vice-versa, aspirar de novo, alisar a capa, acariciar os relevos é uma rotina pra mim, antes, durante e depois que termino de ler. Ajuda a imaginação a dançar, pelo menos pra mim.
Em uma dessas viagens sinestésicas, meus olhos recaíram sobre a dedicatória e pensei em como a relação da Márcia Rubim com o mundo das letras está ligada a uma paixão transmitida por seu pai. Bem, devo dizer aqui que fiz uma dedicatória semelhante ao meu no meu trabalho de conclusão da faculdade. Então, essa relação pai/filha despertou em mim outro aspecto de Adeus à humanidade que não posso deixar passar: a importante ligação entre pai e filha: Márcia, que herdou do pai a paixão pela literatura; Stephanie que encontrou no pai um apoio imprescindível à realização de seu amor imortal. São ideias subjacentes que me veem à mente. Quem sabe?
Então, amigos, esperemos pela continuação desta saga de amor
Cármen Machado.