Andreia Santana 15/10/2011
Verdades que precisam ser ditas
"O racismo e o colonialismo deveriam ser entendidos como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver nele."
(Frantz Fanon)
A citação acima é da obra Pele Negra, Máscaras Brancas, escrita pelo intelectual antilhano Frantz Fanon nos anos 40 e publicada em 1952.
Mais de 50 anos depois da publicação, colocar o dedo na ferida do racismo e dos impactos da escravidão negra nas sociedades pós-coloniais, ainda causa uma certa saia-justa. Em certa medida, algumas passagens da obra chocam por serem completamente radicais, mas dolorosamente verdadeiras, guardadas as devidas proporções, pois passaram-se mais de 50 anos desde a publicação e o fato dele falar com propriedade dos conflitos pós-coloniais nas Antilhas, sobretudo na Martinica, pode levar erroneamente a crença de que seus exemplos não se encaixam ao Brasil. Encaixam-se, com perfeição cirúrgica, em diversas situações, visto que também somos diaspóricos (recebemos contingentes elevados de africanos expatriados pelo tráfico humano por mais de três séculos) e pós-coloniais (visto que fomos colônia portuguesa por mais de 400 anos).
Pele Negra, Máscaras Brancas, diz Lewis R. Gordon, o autor do prefácio da edição brasileira (publicação da EDUFBA), foi escrito originalmente como tese de doutoramento de Fanon na Faculdade de Medicina. A obra, porém, foi recusada e o orientador recomendou que escrevesse sobre um caso clínico. Fanon então decidiu transformar Pele Negra em um manifesto anti-colonialismo e um libelo à libertação do homem, tanto branco quanto negro, do que ele chama de complexo de superioridade (do branco colonizador) e de inferioridade (do negro colonizado).
O livro é uma colcha de retalhos e uma sessão de exorcismo combinadas. Colcha de retalhos porque Fanon, a título de traçar um panorama psicológico dos martinicanos, une poesia, prosa, filosofia, exemplos de casos clínicos com a devida conversa de consultório -, crítica literária (ela analisa livros escritos por romancistas da Martinica que só ajudavam no seu tempo a reforçar o estereótipo de que os negros seriam uma raça inferior), psicanálise etc.
E uma sessão de exorcismo porque o próprio autor, em tom confessional comovente, revela o quanto para ele, enquanto homem negro, a construção de uma identidade descolonizada foi tarefa sofrida. A própria construção da identidade negra é questionada por Fanon, bem como a identidade branca. Daí ele acreditar que a colonização e seus efeitos moldaram sociedades psicologicamente doentes. De um lado, o opressor que precisa do oprimido para legitimar sua superioridade. Do outro, o oprimido que precisa do opressor para legitimar seu lugar de vítima em busca de reparação. É bem radical, sem dúvida, principalmente quando percebemos que na sociedade atual, para que as distorções deixem de existir, é preciso reparação, a título de equilibrar as forças.
Aos olhos do século XXI, a discussão sobre raça estaria encerrada e ao invés disso, trabalhamos o conceito de etnias diferentes em uma única raça, a humana. No entanto, no tempo de Fanon, o conceito de raça ainda era muito presente na sociedade e pretexto para os mais diversos fins, quase todos excludentes, comparativistas e alguns bem cruéis, como o nazi-facismo. O racismo porém, está longe de ser um problema do passado, do tempo de Fanon. E é nesse aspecto que o livro toca o dedo na ferida. Para quem ainda se ilude com a crença de que o Brasil é uma bela e próspera democracia racial, um país multicolorido onde o encontro das raças aconteceu sem sofrimento e que negros, índios e brancos miscigenaram-se sem traumas, a leitura é dolorosa. Mesmo quem não compactua dessa visão estado-novista do país e tem noção clara das desigualdades sociais e raciais ainda presentes nesta república multicultural (aí sim, bem miscigenada), a leitura é esclarecedora e ao mesmo tempo impactante.
Ainda assim, senti falta de um pouco mais de atenção aos mestiços e aos conflitos que eles enfrentam, consigo mesmos e com os outros, quando vivem em sociedades radicalmente segregadas, em que não são suficientemente brancos para ser aceitos entre a elite branca e nem negros o suficiente para engrossar as fileiras do movimento.
Em certas passagens até, ele é implacável. Quando diz que as mestiças - na tradução usa-se o termo pejorativo mulatas - martinicanas não queriam se envolver com homens escuros, mas buscavam sempre os mais claros para se casar e assim "limpar a raça, há desprezo em sua voz. Desprezo por essa mulher martinicana que no entanto, é fruto do colonialismo. Mas, não tem como não identificar um discurso familiar particularmente próximo nessa afirmação de que os negros precisariam embranquecer para existir na sociedade colonialista.
Com a cultura afrodescendente no Brasil, por exemplo, em diversos momentos houve esse conflito entre valorizar a raiz da mãe África ou desafricanizar só um pouquinho, tirar da cozinha e botar na sala de jantar, com o objetivo de ganhar a simpatia da elite. E no Brasil, o conceito de elite, para muita gente, é particularmente parecido com o da Martinica de Fanon: o dinheiro embranquece até a mais negra das peles enquanto a falta do vil metal enegrece a pele mais clara. No entanto, é preciso se guardar as devidas proporções aí também, porque pessoas negras, mesmo ricas, sofrem racismo; enquanto brancos, mesmo bastante pobres, não sofrem a discriminação racial, embora possam sentir o preconceito de classe.
Para Fanon, aos mestiços só resta uma opção: é preciso escolher um lado. Mas, e se o lado que o mestiço quiser escolher for só o lado da aceitação enquanto ser humano, independente da cor da pele? E se a ideia for ser aceito pelos dois lados? E se a intenção for que não hajam lados e sim, respeito na diversidade, seja ela de etnia ou culturas? A obra, escrita apenas 50 anos após o fim da escravidão negra, não faz concessões.
Mas, ainda assim o sonho de Fanon era com um mundo sem diferenciação entre as cores, há lugar no mundo para todas elas, sem que haja dominados e dominadores. Fanon, que escreveu este livro antes dos 30 anos, sonhava com seres humanos, sejam negros, brancos, amarelos, vermelhos, não importa, mas seres humanos. No entanto, ele mesmo reconhece a distância dessa realidade e a luta para reverter o que séculos de um regime cruel e de discursos desqualificantes solidificaram a nível de inconsciente coletivo. É perfeita a análise que faz da publicidade, do cinema, das canções, todas moldadas para demarcar um lugar, inferior, para o negro na sociedade.
Em algumas passagens, Fanon parece aderir a uma ideia binarista da vida, uma ideia de que negros e brancos, africanos/orientais e europeus/ocidentais estariam em eterno conflito. Provavelmente, no seu tempo estavam mesmo e ainda hoje, a democracia étnica esteja longe de ser alcançada. A tendência do mundo globalizado porém, é também globalizar as cores, na teoria ao menos. Há autores que já trabalham com a questão sob uma ótica mais polivalente, sem esse jogo de contrários que parece marcar a obra de Fanon.
Quem era? - Frantz Fanon nasceu na Martinica (ex-colônia francesa nas Antilhas), em 1925 e morreu, aos 36 anos, de pneumonia, em 1961. Cedo demais, para alguém com o seu gênio. Era psiquiatra, dirigiu o Dept. de Psiquiatria do Hospital Blida-Joinville, na Argélia, onde também se engajou na luta pela independência deste país. Soldado durante a II Guerra, foi condecorado duas vezes por bravura. Os amigos mais próximas diziam que era um revolucionário e um homem de temperamento forte. Seu pensamento filosófico, de origem basicamente humanista, inspirou outros estudiosos e pensadores da diáspora africana, teoria política e social, teoria da literatura, estudos culturais e, principalmente, estudos sobre o colonialismo e o pós-colonialismo. Ao todo, escreveu quatro livros, sendo os dois mais importantes lançados em português: Os condenados da terra e Pele Negra, Máscaras Brancas. Este último publico pela EDUFBA, em 2008, com tradução de Renato da Silveira e prefácio de Lewis R. Gordon.