Gu Henri 20/07/2019
Não é uma obra com toda aquela genialidade e coisa fantástica como "Aleph" ou "Ficções" (também seria impossível), e não deveria, pois na maior parte trata-se de poemas, e por vezes os poemas soam como se tentassem simplesmente não serem musicais.
Mas o grande problema como sempre é a diferença da linguagem, no original em espanhol há maior clareza quanto ao que se quer dizer, e pelas peculiaridades não só da língua portuguesa, mas da própria cultura, temos outra barreira imposta. Dou um exemplo disto:
No poema Cambridge, há um excerto que em português se perde de todo:
(...)
Não é uma segunda-feira,
o dia que nos depara a ilusão de começar.
Não é uma terça-feira,
o dia que preside o planeta rubro.
Não é uma quarta-feira,
o dia daquele deus dos labirintos
que no Norte foi Odin.
Não é uma quinta-feira,
o dia que já se resigna ao domingo.
Não é uma sexta-feira,
o dia regido pela divindade que nas selvas
os corpos dos amantes entretece.
Não é um sábado.
Não está no tempo sucessivo,
mas nos reinos espectrais da memória.
(...)
Em espanhol podemos ter a devida compreensão e exatidão do que se propôs a dizer;
(...)
No es un lunes,
el día que nos depara la ilusión de empezar.
No es un martes,
el día que preside el planeta rojo.
No es un miércoles,
el día de aquel dios de los laberintos
que en el Norte fue Odin.
No es jueves,
el día que ya se resigna al domingo.
No es un viernes,
el día regido por la divinidad que en las selvas
entreteje los cuerpos de los amantes.
No es un sábado.
No está en el tiempo sucesivo
sino en los reinos espectrales de la memoria.
(...)
Neste caso de todo simples, podemos perceber que traduções colocam problemas que seriam facilmente solucionáveis, neste caso, o espanhol por ser uma língua tão assimilada pelos falantes de português tem de ser (e devia) ser entendida em sua originalidade, ao menos para quem queria ler um poema ou poesia.
Pois, no caso da cultura lusófona substituiu os antigos nomes dos dias, que eram dedicados aos deuses pagãos, por números ordinários. E daí a perda imensa de sentido.
E não só haja visto que, quarta-feira em português equivale à miércoles em espanhol, ou seja, um dia dedicado a Mercúrio, e com a conquista dos territórios germânicos pelos romanos, Odin -deus germânico- passa a ser assimilado com Mercúrio, e em inglês podemos ler Wednesday, ou seja, em inglês antigo seria Wōdnesdæg, dia do deus Odin, ou Woden.
E, por Borges ser um falante natural de inglês e de espanhol isto soa como que obrigatório aos seus leitores.
...
Sobre o restante, é até meio explícito a forma como Borges acentua, de forma até irônica, a sua cegueira, entremeia-a pelos poemas, pelos contos, e pela sua curta auto-biografia, num momento brinca ser uma coincidência dos antigos diretores da biblioteca da qual exercia o cargo, ou dizia-a ser parte "genética" da família. E, mais irônico ainda é o título ser um "Elogio" dessa "Sombra" que ele mesmo diz ser a cegueira. Outro elemento constante que encontramos na obra borgiana é o labirinto. Me deixei levar pela curiosidade, e fui buscar algumas leituras, li uma obra de Károly Kerényi, e nela consta que os labirintos, ou espirais (que podem ser e simbolizar o mesmo) são na verdade o caminho que se faz para sair ou entrar no reino da morte, ou seja, adentrar o labirinto é uma metáfora para a própria vida.