Marcelo Rissi 20/10/2022
O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam
Encerrada, há pouco, a leitura de ?O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam? (Evandro Affonso Ferreira) ? e com as ideias ainda fervilhando no imo do espírito leitor ? , ocupo-me deste espaço para compartilhar, com a devida licença, algumas singelas impressões, em breves palavras, extraídas dessa experiência literária, recém-ultimada.
Diretamente ao ponto: obra liricamente escultural.
A narrativa é centrada numa pessoa ? cujo nome é uma incógnita ? que teve o coração esfacelado/dilacerado após sofrer uma dolorosa decepção amorosa (?Acabou-se; adeus? é o teor do bilhete ?elíptico? que a sua ?imortal amada? ? palavras do próprio personagem? ? lhe deixou, certo dia, de forma inesperada e sub-reptícia).
Desde então ? há dez anos ? , ele, personagem anônimo e misterioso, vive em situação de rua, no limite entre a razão e a loucura, enquanto aguarda, obsessivamente, o retorno da ?imortal amada? que, há década, ?levantou âncora?. O nome dela, também incógnito, é iniciado com a letra N e sequenciado por 4 (quatro) outras letras, não reveladas (meu palpite é ?Nádia?). Ela possui aroma de alecrim e é oncologista. É praticamente apenas o que se sabe sobre ela a partir dos dados informados pela/na narrativa.
Ele, personagem principal, é ? pelo que se depreende ? bastante culto, além de entusiasta e voraz leitor e, por isso, é usualmente presenteado com alguns livros ao longo de suas andanças erráticas. Assim, o misterioso mendigo ? indivíduo central e voz do enredo ? acaba memorizando os adágios de Rotterdam (diversos deles, citados no original e traduzidos ao longo da narrativa, em sintonia com o contexto de cada cena).
A história é construída, basicamente, no interior dos pensamentos do personagem e se baseia num hipotético monólogo com alguém não especificado/revelado, presumivelmente o próprio leitor.
O conteúdo do colóquio ? formado por reflexões, devaneios e, até mesmo, alucinações ? gira em torno da dor pelo amor perdido e, também, da vida das outras pessoas em situação de rua, que ele observa atentamente sem, porém, conversar diretamente com elas. Embora sem muito interesse pelo passado ou mesmo pela identidade e individualidade daquelas pessoas ? aludidas apenas por apelidos, como ?menino-borboleta?, ?mulher-molusco? e ?alcoólatra de rosto intumescido? ? , ele tenta imaginar as histórias delas e o que as levou àquele destino, desatino e desventura/infortúnio, inclusive a partir de pontuais boatos, não confirmados, que circulam naquela ambiência.
O monólogo também envolve a esperança ? autoconvencida, mas, aparentemente, desacreditada pelo próprio personagem ? de um reencontro, ainda que fortuitamente, com a sua amada, o que lhe serve como anteparo contra a loucura ou, até mesmo, contra a morte prematura. O personagem mantém viva e presente essa esperança, com contornos de obsessão, ao pichar/grafitar a letra N em todos os poros do espaço urbano e no próprio tatame que lhe serve como colchão (fazendo-o, nesse objeto, ao seu canto superior esquerdo, forçando o personagem a relembrar, compulsivamente, a amada, todos os dias, logo ao acordar e imediatamente antes de dormir, já que ele posiciona a cabeça nesse ponto do tatame ao se deitar).
A escrita, quase poética (embora o livro seja construído em prosa, não em versos), é fluida e repleta de figuras de linguagem e metáforas. O autor trabalha amplamente com aspectos sensoriais, notadamente olfativos ? , a exemplo da caracterização de personagens pelo seu habitual aroma (alfazema, alecrim e ?fedentinoso?) ? e visuais, com ampla descrição da arquitetura urbana da ?metrópole apressurada? sobre a qual o enredo se desenvolve.
Pedindo licença e abrindo parêntese para um testemunho pessoal: particularmente, gosto muito de histórias que possuem, como pano de fundo, a arquitetura urbana, especialmente a de grandes cidades.
Adiante.
O personagem enxerga beleza e poesia em todos os cantos, no (e apesar do) tom cinzento da cidade, que ele apelidou de ?metrópole apressurada?. Regozijou-me esse contraste e, nas visitas à capital do estado onde moro, eventuais, sempre tento observar esses contrastes e essas dissonâncias, que, captadas, também maravilham. Nos recônditos labirínticos da internet, deparei-me recentemente com uma frase que, a meu aviso, está afinada a essa percepção. Transcrevo-a, pedindo perdão pela ausência de citação de fonte, cuja autoria desconheço:
?Sou a favor da literatura nos muros. Já pensou andar pela cidade e ver uma poesia em cada esquina?? (publicação acessível por meio do seguinte link: https://www.facebook.com/mocaepoesiaoficial/photos/5351593138264184).
Esse panorama de dicotomias é, inflexivelmente e sem concessões, o tom que norteia essa obra lapidar e liricamente escultural. É o meu livro favorito entre aqueles, por ora, indicados no clube de leitura promovido pela instituição onde trabalho.
Convida-se à leitura, enfaticamente.
Altamente recomendável.