Renan Barcelos 03/10/2012
Trama insatisfatória, personagens interessantes
O Expresso do Oriente de Graham Greene pode não se mostrar exatamente uma história satisfatória como um todo, mas não deixa de ser interessante. Os que gostam do gênero do drama e romance podem encontrar uma boa leitura, contudo, dificilmente os que preferem uma narrativa ágil e ação se encontrarão no livro. Os personagens muito bem modelados nem bons nem maus, apenas humanos com defeitos e virtudes e a forma rebuscada da narração podem ser uma boa referência para qualquer escritor, goste ou não do estilo.
O Expresso do Oriente, trem cuja linha ligava Paris até Istambul, figura em vários segmentos da ficção. Talvez por sua opulência, sendo o primeiro veículo da linha a possuir vagões dormitórios e vagões restaurantes, ou então por sua fama e história conturbada, foi palco de assassinatos nas tramas Agatha Christie, carregou caçadores de vampiro em Drácula, deslocou-se para o espaço em Doctor Who e sediou a maior parte de um episódio de As Tartarugas Mutantes Ninja. O livro de Graham Greene falha em apresentar uma história variada e mirabolante como algumas das outras obras em que figura o primeiro expresso de luxo do mundo, mas tem o mérito de ser uma das primeiras a utilizar o veículo como palco.
Descrito como entretenimento pelo próprio autor, O Expresso do Oriente não apresenta uma trama complexa ou digna de nota, pelo contrário, possui uma história rasteira de drama e suspense. Apresentando vários personagens com histórias, motivações e objetivos diferentes, o autor tenta montar uma rede de intriga em volta do personagem Dr. Czinner, líder socialista iuguslavo que volta para Belgrado na tentativa de fomentar um levante. O que parece uma boa idéia no início do livro, no entanto, tem um fechamento deficiente e o que aos poucos parecia estar se transformando na trama central da obra acaba perdendo a força e não tem um acabamento satisfatório, prometendo uma situação, mas não chegando a concluí-la.
Ainda assim, mesmo que aquilo que parece captar e juntar os personagens em um ponto comum não se mostre com a devida qualidade, o livro se sobressai em outros aspectos
Muito mais interessante do que como os personagens acabam se relacionando com a situação de Belgrado são suas próprias histórias pessoais. O Expresso do Oriente é vendido como um livro que apresenta personagens humanos e verossímeis, com erros, acertos e particularidades e, no decorrer do livro, isso se mostra verdadeiro. Mesmo odiável, a jornalista Mabel Warren consegue intrigar com sua personalidade; Coral Muske, a pobre dançarina, encanta com sua ingenuidade e esperança. Mesmo personagens que não apresentam relevância alguma para a história em si, como o padre ou o soldado Iugoslavo, possuem vida e um carisma interessante.
O ponto alto da trama se mostra na força que os personagens possuem e como pessoas tão diferentes acabam por interagir. Mesmo que a maior parte deles convirja em direção ao drama de Czinner (ou sirva para levar outra personagem a interagir com o doutor socialista, como o escritor Quin Savory), a forma como seus caminhos vão se cruzando faz com que um leitor que goste desse tipo de obra, ou apenas esteja lendo por exercício, queira descobrir o que guarda o fim da viagem até Istambul. Embora não seja um grande livro, sub-tramas simples como a o dono de uma empresa de groselhas ponderando sobre a compra de uma empresa rival conseguem se apresentar de forma competente e o modo como os personagens são expostos faz toda a diferença.
A narrativa tem o mérito de ser muito bem desenvolvida, sendo escrita na terceira pessoa, descritiva e rebuscada e bem próxima do personagem que faz o ponto de vista da vez. A forma como é apresentada lembra muito a filmes como Crash: no Limite ou crime comedys como Snatch: Porcos e Diamantes e Queime Depois de Ler, sem ter a mesma carga de ação, contudo. Existe a visão e o drama pessoal de diversos personagens, que interagem entre si em instantes paralelos e, sem perceber, acabam influenciando no destino de outros, seja por uma conversa, um gesto, ato ou simplesmente por estar no trem. Embora possa ser uma história parada, altamente descritiva e rebuscada se comparado com os livros de entretenimento moderno, é possível a um leitor sem gosto especial pelo gênero aproveitar a leitura e mesmo torcer para este ou aquele personagem.
A boca da caldeira abriu-se e o clarão e o calor da fornalha subiram por um momento. O maquinista abriu todo o regulador, e o piso estremeceu com o peso dos vagões. Dali a pouco a locomotiva passou a trabalhar suavemente, o maquinista puxou a válvula de cortar o vapor e o sol acabou de se pôr quando o trem passou por Bruges, o regulador fechado, correndo com pouco vapor. O crepúsculo iluminava os altos muros que pingavam, becos com água estagnada, radiosa por um momento, refletindo a luz líquida. Em algum lugar dentro do quadro acanhado estava a cidade antiga, como uma jóia ilustre, por demais contemplada, comentada e negociada. Depois, no meio do vapor viu-se uma selva de loteamentos, a monotonia às vezes interrompida por casas altas e feias, dando frente para todos os lados, decoradas com azulejos coloridos, que agora absorviam a tarde. As fagulhas do expresso tornaram-se visíveis, como enxames de besouros vermelhos tentados ao vôo pela noite; caíam e ficavam ardendo junto aos trilhos, tocando nas folhas, gravetos e talos de couve, virando fuligem. Uma pequena num cavalo de charrete levantou o rosto e riu; no barranco ao lado da linha estavam deitados um homem e uma mulher, abraçados. Depois ficou escuro, lá fora, e os passageiros através do vidro só podiam ver o reflexo transparente de seus próprios vultos.
Trivia:
A linha do Expresso do Oriente não é mais operada desde 2009.
Mesmo escrito em 1933, uma das personagens do livro, Mabel Warren, é lésbica.
O curso do Expresso do Oriente foi modificado cinco vezes.
O livro ganhou um filme um ano após seu lançamento.
Postada originalmente em: https://eoutroscenarios.wordpress.com/2012/10/03/resenha-o-expresso-do-oriente/