spoiler visualizarPJ 26/05/2014
Gênero, Colonização e Literatura
John Maxwell Coetzee desenvolveu uma literatura política muito profunda, sem ser blasé, cair em clichês ou lugares comuns de protestos, mesmo se desvencilhando das críticas apáticas (algumas patéticas, como já dizia Octavio Paz) da vanguarda. Se pode dizer que ele desenvolveu ao mesmo tempo uma literatura intimista, de aprofundamento de seus personagens e em meios atrozes de violência incomensurável.
Foe, traduzido poderia ser simplesmente Inimigo, ou é Foe de Daniel Defoe, o escritor de Robinson Crusoé. Estranho pensar por que um livro deste porte e precípuo poder literário ainda não tem uma tradução no Brasil.
A literatura de Coetzee tem algumas variedades bem peculiares ao escritor, há livros lineares (Desonra), outros de metanarrativa (A Infância de Jesus), trabalhos de engajo pessoal (Trilogia autobiográfica ficcional) e há os experimentais como Diário de Um ano Ruim e Foe.
Estes trabalhos experimentais não estão dissociados de contextos tampouco são herméticos ou vazios, quer dizer, não é estética pela estética, estamos lidando com um escritor tão crucial quanto José Saramago. Literatura é política e o trabalho de J. M. Coetzee se desenvolve como construção do escritor, a função do intelectual e a posição da mulher.
Robinson Crusoé (Daqui em diante haverá spoilers) é a típica (Esta análise é feita a partir da leitura do livro, você pode continuar achando a história bonitinha) história de um colonizador inglês que chega a qualquer lugar do planeta e mesmo quando naufraga é capaz de reerguer uma civilização diante de seus olhos. Até aí, já é bem conhecido, estamos falando de Daniel Defoe, autor de outros livros, como Memórias de um Cavaleiro, Roxana e Moll Flanders, e além disso ele era amigo de pessoas importantes ligadas a Coroa Inglesa. Mas a construção Coetzeeana vai além.
Susan Barton é quem naufraga na ilha. Lá, uma ilha desabitada, ou a região é desabitada, não dá pra saber, talvez seja a Bahia no Brasil. Ela conhece um Negro (ele é o famoso Sexta-feira), e o autor é enfático, é “The Negro”, palavra que os Africânderes praticamente aboliram de seu idioma (Africâner é uma etnia na África do sul de origem Holandesa, isto é, descendem diretamente dos Colonos). A segunda diferença é Robinson Cruso que mantém um controle sobre Sexta-feira, sequer lhe ensinou uma língua, e a comunicação entre os dois, The Cruso e Friday é por dominação, sem desenvolvimento de linguagem. Susan fica cada vez mais encurralada e sequer consegue fugir. O faz, quando The Cruso morre.
Voltando para a civilização, junto do negro Friday, eles conhecem o próprio Daniel Defoe, que escreve a história narrada por Susan e a primeira coisa que Daniel Defoe faz (Foe, inimigo, o escritor inimigo das mulheres, dos negros, dos colonizados), é tirar Susan da história, a segunda é transformar Robinson Cruso, um homem decadente e incapaz em um líder de um lugar que nunca existiu e depois, a terceira é transformar Friday, o sexta-feira, em um nativo com traços ocidentais, quer dizer, já deixou de ser negro.
Na terceira parte do livro, Daniel Defoe já ganhou muito dinheiro com Robinson Crusoé. Por sua vez Susan Barton e Sexta-feira, estão cada vez mais pobres e necessitados e buscam em Foe alguma ajuda, já que enriqueceu com a história que contou sobre eles, que contou obviamente do seu jeito de colonizador.
A partir disto, as interpretações são abertas, sobretudo pelo final impressionante, mas as alusões são óbvias, assim como a crítica crucial, além de fazer uma crítica a história da colonização com o domínio dos Africâneres na África do Sul, e também da colonização do Brasil, já que a Bahia é tão citada. Há ainda uma outra camada, a crítica da história da literatura que sempre deixou oprimidos de lado, sejam negros, mulheres, índios, gays ou os que são colonizados.
O livro é uma verdadeira obra de arte literária que demonstra o quão a literatura pode ser literatura sem esquecer as mazelas sociais que estão em torno de seu contexto e sobretudo, o papel do escritor contemporâneo, sem repetir erros e equívocos ideológicos que escritores de outros séculos já cometeram.
P.S. Coetzee é de origem Africâner.