r.morel 05/04/2017
Vivendo o sonho
Acompanhamos o pai do gonzo jornalismo em sua jornada selvagem ao coração do Sonho Americano. Hunter S. Thompson, uma magnum.357, o advogado gordo samoano e o porta-malas do conversível vermelho transbordando sacos de maconha, 75 bolinhas de mescalina, cinco folhas de ácido de alta concentração, um saleiro cheio até a metade com cocaína e pílulas coloridas, estimulantes, tranquilizantes, tequila, rum, uma caixa de Budweiser, meio litro de éter puro e duas dúzias de amilas.
Cobrir uma matéria como os outros jornalistas não dá. A objetividade e imparcialidade não existem. O repórter faz parte da matéria. Ele é o assunto da matéria. Ele é a matéria. Buck, o protagonista da história e alter-ego do autor Hunter Thompson, afirmar ser Doutor em Jornalismo Gonzo. Podemos imaginar a destruição que está por vir…
“Medo e Delírio em Las Vegas” é um livro do jornalismo que gasta toda a sola do sapato e a gasta bem. É um relato cru dos States dos anos 70, quando o tal bendito e famoso e perseguido Sonho Americano desaparecia entre tiros e cartuchos vazios dos colts.45 que estranhamente cismavam em atingir os próprios ianques; explodiam os irmãos Kennedy e tantos jovens no Vietnã e líderes populares, M.L King e Malcom X.
Vemos a juventude destruída pelas drogas, que antes eram a liberação paz e amor dos anos 60. Sonhos, ideais e ideologias transformados em uma bad trip louca e aterrorizante que predomina hoje em dia e espalha-se por todos os cantos, por todos os mundos.
O humor e as situações absurdas do livro podem criar a sensação errada de apologia aos entorpecentes. Esse é um erro sério. “Medo e Delírio…”, com seu herói doidão e drogado, mister Duke, PhD em jornalismo gonzo, é uma crítica ríspida. Duke é um personagem exagerado porque apenas um louco muito louco e maluco varrido pode ter consciência em um mundo bizarro e sem sentido. O absurdo! O absurdo!
Em certas cenas, nas quais Duke lê o jornal, as manchetes são reproduzidas e geralmente discorrem sobre crimes relacionados aos variados tipos de drogas. Um jovem arranca os glóbulos oculares e nem sente dor por estar entupido de tranquilizantes para animais. Esse e outros crimes chocam até o doidão Duke, que tudo já viu e ainda vê.
E Duke falou: “Mas nada disso faz a mínima diferença para alguém com a cabeça cheia de mescalina. Você fica andando por aí, fazendo tudo o que lhe parece correto. E geralmente tem razão. Vegas é tão cheia de pessoas naturalmente esquisitas - criaturas realmente transtornadas - que as drogas não chegam a ser um problema, exceto para os policiais e a máfia da heroína. Drogas psicodélicas são quase irrelevantes numa cidade onde você pode entrar num cassino a qualquer hora do dia ou da noite e assistir a um gorila sendo crucificado numa cruz de néon flamejante que de repente vira um cata-vento, girando o animal em círculos ensandecidos sobre a cabeça dos jogadores”.
O livro foi publicado, originalmente, em artigos na revista Rolling Stones durante o ano de 1971, e mantém a divisão em capítulos curtos e as ilustrações originais de Ralph Steadman. É um clássico da contracultura, sarcástico e único, um berro que expõe o lado podre de vômito e pus dos States e do American Way of Life. A tinta aqui é pesada.
No estilo gonzo, muitas passagens são reflexões e viagens psicotrópicas de Duke/Hunter. As impressões de Las Vegas, dos moradores, dos turistas. Não sobra um. Em outras cenas, as situações são tão absurdas que ficam engraçadas como o gordo advogado samoano, sujo de vômito e nu, tentando esganar a coitada da camareira que só queria limpar o quarto destruído por cinco dias de drogas pesadas. Os diálogos também são ótimos.
Garçonete: Cinco tacos, um tacobúrguer. Sabe onde fica o Sonho Americano?
Lou: Como assim? O que é isso?
Advogado: Bem, a gente não sabe. Fomos mandados de San Francisco até aqui pra encontrar o Sonho Americano. Foi uma revista, eles querem uma matéria.
Lou: Ah, um lugar.
Advogado: Um lugar chamado Sonho Americano.
Lou: Não é o antigo clube dos Psiquiatras?
Garçonete: Acho que é.
Certo… Fora do contexto o diálogo ficou incompreensível, mas a conversa surreal continua entre Duke e o advogado samoano e a garçonete e a cozinheira Lou. E a cena termina com os quatro… Bem, vocês sabem…
Fora algumas repetições, a força do livro se mantém 40 anos depois. Somente isso bastava para uma crítica favorável. É fácil ficar datado, sobretudo ao narrar um momento específico de um lugar em particular. É um livro universal e, como não ser, sua história é atual, ainda está em pauta. Drogas e falta de perspectivas. É o nosso mundo. Continua sendo o nosso mundo. É também o nosso Brasil tão United States of America. A cultura deles não se infiltrou?! As drogas vieram, ora pois. Entende-se o sucesso de “Medo e Delírio em Las Vegas”. Tem uma estrutura interessante e a escrita é livre e criativa, sem receios em relação às recorrentes críticas dos especialistas em literatura erudita; é um trabalho livre e criativo como todos os textos e livros deveriam ser.
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