Bee 08/09/2016
A grande arte, ficção marginal e personagens urbanas com maestria
Rubem Fonseca é um dos autores clássicos do cenário literário nacional mais aclamado, e já tinha um tempo que eu estava na vontade de ler um livro deste escritor, especialmente quando fiquei sabendo, em particular, da narrativa concisa policialesca ─ podemos dizer, uma das fontes de onde bebeu Marçal Aquino e outros contistas da geração 90 (expressão cunhada de uma antologia de contos organizada por Nelson de Oliveira) ─ que tem em comum a temática urbana, a preocupação em representar o esgarçamento do tecido social por meio de uma prosa fragmentária, ora mimetizando a fala das ruas, ora imitando as narrativas detetive, com direito à prostitutas, matadores, tiras, tudo isso em meio à uma violência permeada por críticas e ironias sociais, meio que dando voz à todos esses marginalizados de direito do grande maquinário urbano.
A grande arte entra aqui, com certeza, como um título notadamente acertado para começar a ler o melhor do que há no portfólio de Rubem Fonseca. O advogado Paulo Mandrake, ao qual fiquei sabendo, é uma personagem icônica, recorrente nas histórias dele, logo de cara me conquistou com sua erudição e cinismo característico. Ele começa a investigar o caso de uma mulher que é assassinada, e marcada com um P riscado à faca no rosto da vítima, e logo vai sendo conduzido para uma organização criminosa conhecida com escritório central.
O que esse livro tem de diferente são duas coisas. Ele "passeia", na sua segunda parte, pela semana de arte moderna que vinha surgindo na aristocracia paulicéia, com uma maestria notável. Descrição de costumes, da sociedade, da mudança de hábitos advindos de uma imitação da vanguardista parisiense, camuflado de patriotismo, tudo com um realismo exarcebado que, pelo menos eu, não vi em nenhuma outra obra literária que não seja de época. Como sabemos, o complexo de vira-lata, este que faz os tupiniquins pagarem um pau tremendo para tudo que é gringo, como se fosse a expressão máxima de civilização e superioridade racial, só pode ser definido como síndrome da índia colonizada ─ e ela permeia todas as esferas da produção cultural, desde o cinema, arte, literatura, passando pelo jogo social de flerte e conquista. Hoje não se vê alguém escrevendo sobre nossas cidades, e as pessoas de nossas cidades com tanto afinco quanto compra a produção estrangeira no cinema e nos livros, de forma pré-moldada e acrítica ─ não me fale em globalização; globalização unilateral tem outro nome, está mais para imperialismo cultural.
A segunda coisa, não percamos o foco da resenha, é que Mandrake não é um detetive alá "Op", Dupin, Holmes. É apenas um homem comum, falível, descuidado, mulherengo e motivada no início por uma sede de vingar a honra de seu grande amor ─ Ada ─ eu acho que parte daí grande parte da empatia do leitor pela personagem. Rubem Fonseca conseguiu construir personagens muito bem desenvolvidos, ícones, na verdade ─ como o anão preto falastrão e extremamente ardiloso, e em meio à uma mudança de focos narrativos, inserção de novos personagens, antagonistas, ele consegue manejar bem à história. No início, secava odiosamente Camilo Fuentes, um desses gângsteres movidos por um ódio frio oriundo da hostilização das pessoas à sua aparência indígena, que depois se torna um importante aliado ─ e no meio dessa reviravolta, me peguei torcendo, afinal, na iminência de cada página para ele não ter um final trágico, pelo menos.
Talvez a principal técnica que chame atenção logo de cara, é essa mania de pegar um assunto e discorrê-lo com a profundidade de uma enciclopédia barsa, quase de maneira acadêmica, enriquecendo as cenas de lutas com armas brancas. Neste caso aqui, são as lâminas, as facas, punhais ─ a grande arte do percor. É um dos elementos do livro, que chama a atenção, quase tanto que poderia ofuscar a genialidade verdadeira do escritor ─ que está na construção da inteligência envolta em sentimentos e amoralidades de seus personagens que consegue adentrar dentro do âmago pessoal de cada um deles, como uma experiência de autoconhecimento. E então, você percebe que não são personalidades tão distintas da nossa, embora queiramos negar, a primeira vista, pelo bem das aparências sociais.